A luta pela moralização dos concursos públicos no nosso país acaba de sofrer um duro revés na Câmara dos Deputados, com a rejeição do projeto de lei que criava punições específicas para fraudadores dos certames
José Wilson GranjeiroA luta pela moralização dos concursos públicos no nosso país acaba de sofrer um duro revés na Câmara dos Deputados, com a rejeição do projeto de lei que criava punições específicas para fraudadores dos certames. O projeto foi analisado em caráter terminativo pela Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público, o que significa que, se fosse aprovado, não precisaria ser levado ao plenário para votação.
O projeto, de autoria do deputado Neilton Mulim, do PR do Rio de Janeiro, teve como relator o deputado Eudes Xavier, do PT do Ceará. Xavier deu parecer contrário sob a alegação de que as penas previstas na Lei das Licitações (Lei 8.666/1993) já se aplicam a esse tipo de contravenção. Para o relator, além de multas, advertências, suspensão temporária da participação em licitações e impedimento de contratar com a Administração Pública por até dois anos, a lei prevê detenção dos infratores por período variável, a depender da gravidade do delito.
Com base nesse argumento, o deputado do Ceará convenceu a maioria da Comissão a rejeitar o projeto. Sua interpretação, entretanto, carece de fundamento jurídico. Não há, na Lei 8.666/1993, norma penal específica que defina como crime a conduta de fraudar concursos públicos. Essa interpretação só seria possível se o concurso público fosse considerado uma das modalidades de licitação tratada naquela lei. A Lei das Licitações, cujo objetivo expresso é regulamentar o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências.
Tratar o concurso público como uma modalidade de licitação para efeito de punição dos fraudadores não faz sentido algum. Trata-se de fatos administrativos de características totalmente diferentes. Enquanto a licitação se destina a selecionar a melhor proposta para, por exemplo, a execução de determinado serviço a ser prestado por particular ao poder público, o concurso se realiza para preencher cargos e empregos públicos por pessoas que se habilitem por meio de provas de conhecimentos ou de provas e títulos acadêmicos. Onde estão, nos dois procedimentos, as semelhanças que permitem estender ao concurso as normas de licitação?
Eu, particularmente, não vejo nenhuma. E digo mais: no direito penal vige o princípio da pena específica. Em outras palavras: se não houver a previsão da pena no arcabouço normativo, o juiz não pode condenar à cadeia os fraudadores de concursos.
A tese vitoriosa na Comissão de Trabalho da Câmara não consegue se sustentar nem mesmo à vista do nosso Código Penal, em que o assunto “fraude em concurso público” não existe. Há quem considere que o delito se enquadraria no art. 171, que tipifica o crime de estelionato e fixa as penas para os autores desse delito. Mas tal posição não é pacífica, nem na doutrina, nem na jurisprudência.
A título de exemplo, permito-me citar um julgamento de habeas corpus em que o Superior Tribunal de Justiça determinou o trancamento da ação penal em caso ocorrido no Estado do Paraná. O ministro relator, Jesus Costa Lima, opinou que “a utilização de aparelho transmissor e receptor com o objetivo de, em concurso vestibular, estabelecer contato com terceiros para obter respostas para questões formuladas nas provas não constitui, mesmo em tese, crime. Pode configurar ação imoral”.
Eis aí a lacuna legal de que se beneficiam os fraudadores para escapar da merecida punição, quando descobertos. Não é à toa que lutamos pela aprovação de outro projeto de lei da Câmara dos Deputados que também criminaliza a fraude em concurso público, com penas de dois a oito anos de reclusão, tal como pretendiam o projeto rejeitado na Comissão de Trabalho e pelo menos outros dois em tramitação naquela casa do Legislativo, que tipificam o crime de fraude em concurso público ou vestibular.
Pelo projeto rejeitado, quando a violação ocorresse durante a realização das provas, a punição dos responsáveis dependeria de dolo ou culpa. Nesse caso, a entidade promotora do processo seletivo seria proibida de participar da realização de qualquer concurso pelo período de cinco a oito anos, e as despesas do candidato deveriam ser ressarcidas. Ainda segundo o projeto, caso houvesse vazamento de informações diretamente da entidade promotora, a imputação de responsabilidade independeria de dolo ou culpa. Nessa situação, além de ficar impedida de realizar concursos pelo período de cinco a oito anos, a entidade teria imediatamente suspensa a participação de qualquer processo durante a apuração da fraude.
Na justificação do projeto, o autor, deputado Neilton Mulin, lembrou episódio recente, que ocorreu em São João de Meriti, na Baixada Fluminense. No precedente, um suspeito fora preso acusado de vender a prova com as questões resolvidas de concurso para a Polícia Rodoviária Federal. O valor cobrado pelo gabarito era de R$ 40 mil. O suspeito, preso em flagrante e encaminhado para a Polícia Federal, já teria vendido a prova para diversos candidatos, segundo apuração da Polícia Rodoviária Federal. Ele procurava os compradores em cursos e faculdades. As provas fraudadas seriam realizadas para agentes do Mato Grosso e do Pará, mas o concurso acabou suspenso.
Infelizmente, os deputados da Comissão de Trabalho da Câmara não se sensibilizaram com o apelo final feito pelo autor do projeto na sua justificação. Solidário a ele, transcrevo suas palavras, por considerar que retratam fielmente esse que considero mais um gravíssimo problema do nosso país: “Por uma questão de justiça com tantos brasileiros que estudam horas infindáveis e arcam com altas despesas com material de estudo e cursinhos, em detrimento de momentos preciosos de suas vidas junto aos seus familiares, entre outros sacrifícios, além do risco de termos pessoas despreparadas e desonestas em tantos cargos públicos de alta relevância para o país, peço o indispensável apoio dos meus ilustres colegas nesta Casa no sentido de aprovar o projeto de lei que ora submeto à Câmara dos Deputados, como forma de fazermos com que todos os envolvidos no processo seletivo possam, efetivamente, cercar-se dos cuidados devidos para os concursos, e os candidatos possam abraçar as carreiras para as quais se prepararam e optaram. Além de punir aqueles que insistirem em desrespeitar as leis.”
De acordo com o regimento interno da Câmara, o projeto moralizador dos concursos públicos ainda poderia ser salvo. Mas, sinceramente, não creio que isso venha a acontecer. Como a proposta tem caráter conclusivo e foi rejeitada pela única comissão de análise do mérito, será arquivada, a não ser que haja recurso de 52 deputados para sua análise pelo Plenário.
Diante disso, e parafraseando o apresentador de televisão Boris Casoy, se o projeto for mesmo para o arquivo só me resta dizer: ISTO É UMA VERGONHA.
J. W. Granjeiro é Diretor-Presidente do Gran Cursos; coordenador do Movimento pela Moralização dos Concursos - MMC. www.professorgranjeiro.com. Twitter: @jwgranjeiro