Pirataria em concursos é crime e pode dar cadeia

Esta prática ilícita viola o direito autoral e a propriedade industrial. Especialistas explicam como os “rateios” prejudicam os cursos preparatórios, professores e os próprios alunos

Patricia Lavezzo   Publicado em 28/06/2017, às 09h47

A preparação para um concurso público exige dedicação, tempo e, principalmente, investimento financeiro. São livros, apostilas, cursos presenciais, vídeo-aulas, entre tantos outros materiais que acabam pesando no bolso do concurseiro. A partir daí surgem às divisões desses valores entre duas ou três pessoas, com o intuito de diminuir os custos com os estudos. 
Há alguns anos, esse hábito começou a crescer muito no meio dos concursos públicos e passou a ser conhecido como “rateio”. Para se aproveitarem da situação, algumas pessoas passaram a comprar materiais didáticos e revendê-los a terceiros sem repassar o lucro para os autores, tornando essa prática ilícita, passível de indenização, já que o conteúdo dos cursos preparatórios é protegido pelo Direito Autoral. 
Os “rateios” não prejudicam apenas os professores e os próprios cursos que tiveram o trabalho de desenvolver todo o material didático e não irão receber nada em troca, mas também os alunos que adquirem esse material totalmente desatualizado. Nos cursos oficiais, além de poder tirar dúvidas com os professores, o concurseiro recebe todo o suporte necessário, com chats online, fóruns, materiais e simulados atualizados, entre vários outros benefícios. 
O juiz federal, professor universitário, palestrante e autor, William Douglas, já se deparou com reproduções ilegais de seus livros, até mesmo de obras que disponibiliza gratuitamente. “Recentemente escrevi um artigo sobre o tema, onde relato ter sido convidado para um grupo de WhatsApp e, quando entrei, descobri que havia o compartilhamento de obras jurídicas ‘mais em conta’. Em poucos dias presenciei, com pesar, inúmeras obras sendo oferecidas para pessoas que, em sua maioria, estavam achando tudo muito natural. Disse no grupo que isso era ilegal, imoral e um abuso contra os professores. O administrador, então, me excluiu” e completa “sempre procuro tomar as medidas cabíveis quando encontro um conteúdo pirateado. Autores e editoras sempre acionam a ABDR (Associação Brasileira de Direitos Reprográficos), alertam sites sobre a disponibilização do conteúdo ilegalmente e, às vezes, entram em contato com quem disponibilizou”.
Segundo William, a pirataria prejudica todo o sistema de produção de conhecimento: “Todos que trabalham produzindo material para estudo ou vivem exclusivamente dessa atividade ou sacrificam seu tempo, seu lazer, o convívio com a família, seu dinheiro e, muitas vezes, sua saúde para preparar um material adequado, atualizado e acessível. Aqueles que saqueiam a remuneração pelo nosso trabalho agem como se devêssemos trabalhar gratuitamente. Ainda fico impressionado de ver tanta pirataria tratada de forma tão natural por pessoas que buscam manter sua retidão moral em tantas outras áreas. Não adianta lutar pelo fim da corrupção e continuar cometendo esses pequenos crimes, essas pequenas corrupções do dia a dia”. 
A solução para a pirataria envolve a mudança do pensamento e a postura das pessoas. “É necessário passar a encarar a pirataria sem a condescendência corriqueira, mas como é: um crime. As pessoas criticam o governo por não valorizar os professores, mas aceitam placidamente utilizar seus livros, aulas e vídeos sem remunerar os mesmos. Consumir produtos piratas é tão danoso quando piratear um produto. Alerto que sempre existe algum tipo de ‘lucro’. Muitos fazem rateios que na verdade geram lucro e outros ‘lucram’ a imagem de ‘gente boa’, de ‘amigo’ usando o trabalho dos professores”, conclui William.
Para quem ainda não acredita que o famoso “rateio” seja crime, temos um exemplo de uma condenação por essa prática: Segundo matéria divulgada no site do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), uma mulher foi condenada a indenizar a Ponto OnLine Cursos Ltda por vender a terceiros material didático adquirido em curso preparatório para concurso público. A condenação determina que a ré pare de comercializar os produtos e que faça o ressarcimento do prejuízo material causado à empresa virtual no valor de três mil exemplares da obra até o importe de R$ 200 mil.

Saiba qual o crime cometido pelo rateio


Confira, a seguir, a entrevista com Francisco Sannini Neto, que é delegado de polícia do Estado de São Paulo, mestre em direito e professor da Academia de Polícia de São Paulo e do Damásio Educacional.
JC: Qual crime comete aquele que comercializa material didático sem a autorização dos autores?Francisco Sannini: Primeiramente, é preciso consignar que estamos diante de uma ofensa ao bem jurídico “propriedade intelectual”, que protege todas as criações que nascem do intelecto humano, podendo dividir-se em duas espécies: propriedade industrial e direito autoral. A primeira protege as criações do intelecto humano com finalidade econômica, enquanto o segundo protege as criações com finalidade científica, cultural e literária. Não por acaso, esses bens jurídicos são tutelados por leis distintas (Direito Autoral pela Lei 9.610/98 e Propriedade Industrial pela Lei 9.279/96). Assim, considerando que apostilas e vídeo-aulas de cursos preparatórios para concursos públicos têm um conteúdo científico relacionado às matérias tratadas, são protegidos pelo Direito Autoral. Ocorre que esses produtos, na maioria das vezes, também estão vinculados a uma marca determinada, como o Damásio Educacional, por exemplo, razão pela qual, contam, ainda, com a proteção da Lei de Propriedade Industrial. Desse modo, a pessoa que vende esses materiais sem a autorização devida viola os dois bens da propriedade intelectual (direito autoral e propriedade industrial). Além das consequências previstas na esfera civil, o agente pode responder pelos crimes tipificados na Lei 9.279/96 (arts. 191 ou 195), por violar a marca, e no Código Penal (art.184), por violar direito autoral, com penas que podem chegar a até quatro anos de reclusão. 
JC: Quem compra esse material não autorizado também está cometendo um crime? Francisco Sannini: Tendo em vista que a conduta de comercializar apostilas, livros, vídeo-aulas etc. sem a autorização dos autores constitui crime, conforme acabamos de comentar, aquele que adquire esse material não autorizado pode responder pelo crime de receptação, previsto no artigo 180, do Código Penal.
JC: Existe solução para essa prática ilícita?Francisco Sannini: No Brasil, infelizmente, sempre houve esse tipo de conduta, onde pessoas acabam se aproveitando das outras. O pior é que isso ainda acabou sendo rotulado de “jeitinho brasileiro”, como se houvesse justificativa para malandragem. No início do ano nós acompanhamos a onda de violência ocorrida no Estado do Espírito Santo devido a greve da Polícia Militar. Vimos que pessoas comuns se aproveitaram da fraqueza do Estado para saquear lojas e supermercados. Ora, se precisamos de polícia para sermos honestos, estão somos uma sociedade de bandidos soltos. Parece-me que o raciocínio é o mesmo nesses casos de violação de propriedade intelectual. Destaque-se, ainda, que esse tipo de conduta não prejudica apenas o autor intelectual, mas todo o mercado do gênero e as pessoas envolvidas no setor, o que representa inúmeros empregos. A solução para esse tipo de coisa passa, necessariamente, pela conscientização das pessoas sobre a perniciosidade dessa conduta, cabendo ao Estado efetivar uma rigorosa fiscalização sobre essa atividade ilícita.  
JC: Como denunciar?Francisco Sannini: Qualquer crime pode ser delatado por meio do “disque-denúncia”, onde o delator não precisa se identificar. Sugerimos o acionamento da Polícia Civil, por meio do número 197. Outro caminho é notificar a empresa interessada, que em muitas vezes nem sequer tem conhecimento que está sendo vítima de um crime.