por Marcia Tiburi
Redação Publicado em 11/09/2008, às 13h13
por Marcia Tiburi
A encenação de Hamlet dirigida por Aderbal Freire-Filho no teatro da FAAP neste ano de 2008 põe Ofélia, a heroína suicida de Shakespeare, no cenário brasileiro. Bem interpretada pela atriz Georgiana Góes, o mérito simbólico maior dessa figuração de Ofélia é o da preservação do caráter de ninfa das águas da heroína da fragilidade tão bem desenhada por Shakespeare. Ofélia tem um papel muito importante no texto shakespeariano e um pouco de atenção ao seu lugar ilumina o campo da fantasia que uma peça como Hamlet necessariamente provoca, seja na interpretação da vida, da arte ou da subjetividade de cada um. O dedo de Hamlet facilmente toca a ferida da vida, da arte e do eu de cada um de nós. Ofélia é o emblema da precariedade em nós. Hamlet a tem na mão como a caveira. Tem a cada um de nós.
Mas precisamos falar mais dessa "ninfa" que move a peça.
Um ator nunca faz o que quer com seu personagem, antes atualiza junto a ele suas próprias potências. A direção de Freire-Filho ocorreu no espírito da única fidelidade que é possível haver no teatro, aquela que concerne ao texto em sua atualização para o tempo em que é encenado. Além dela, outra fidelidade bem mais clandestina esteve em cena. A que diz respeito ao fato de que Ofélia é uma jovem nobre dinamarquesa. No espírito da coerência temos nesta encenação uma Ofélia branca, de cabelos castanhos claros, na qual é a delicadeza que dá o tom, e a ingenuidade emoldurada pela alegria da boa moça que caracteriza, ontem como hoje, um traço fundamental da estética aplicada às mulheres.
Temos aí uma estética feminina. É claro que estou a falar de "estética feminina" como estereótipo, como código de uma cultura, de uma classe social ou econômica que faz valer seus valores também no que diz respeito à aparência das mulheres. O feminino define-se como código estético rígido que envolve uma moral, um modo de comportar-se, um modo de aparecer que impõe a suavidade, embora haja com total truculência simbólica. Ofélia é personagem totalmente sujeita ao que uma visão patriarcal pode fazer de uma mulher. Diferentemente das heroínas fortes de outras peças de Shakespeare, Ofélia é apenas a parte negativa de Hamlet, a mulher que ele, entre ser e não ser, confuso diante dos horrores familiares a que era submetido, não quis. Ofélia é rejeitada no bojo da loucura teatral e histérica de um outro, o melancólico Hamlet, e sucumbe por não haver, para ela, outra saída. Os olhos patriarcais pousam desde sempre sobre Ofélia, que a eles se sujeita como boa moça. É sempre o que se espera das mulheres.
A leitura inevitável é a de que uma boa moça, mesmo enlouquecendo, o deve fazer de modo comportado. Sua loucura tem coreografia mansa e cantante, seu suicídio é suave e deslizante. Quase não é um suicídio. Será, no entanto, apenas a loucura que precede o suicídio pouco voluntário que mostrará o desencanto daquele estereótipo. É a loucura -não se perca de vista que Ofélia enlouquece, Hamlet apenas finge - que inverte a perspectiva e mostra o que há de bizarro na postura da boa moça perdida de si por conta da rejeição e das ofensas de um louco astucioso. A verdade sobre a loucura de ambos é o que se perde. Sabemos apenas que Ofélia morre sem muito propósito. Para garantir a tragédia, Shakespeare precisava matar Ofélia e evitar qualquer chance de um final feliz. Ela complementa a infelicidade de Hamlet como seu complemento menor e mais frágil. "Fragilidade, teu nome é mulher" seria o nome da peça se a protagonista fosse Ofélia.
A direção em questão poderia ter pensado uma Ofélia-Moema e enveredado num rigor de atualização pelo caminho brasileiro que envolve as ninfas das águas. Não nos esqueçamos de nossa Ofélia-índia que, lançada nas águas violentas do mar que embala a partida do Caramuru - o "dragão do mar" - de Santa Rita Durão, também morre acidentada-suicidada. Que tais suicídios não sejam corajosos, mas "acidentais", nos põe diante da pergunta pelo significado da morte de Ofélia em seu nexo com o fato de que ela seja mulher e que deva morrer na água. A pergunta não vem sem a face descarnada tão própria à peça de Shakespeare: a verdade da mulher, o lugar que lhe cabe, é a loucura que faz par com a morte em um retorno que não se dá ao pó. Ofélia morta na água é um emblema auto-referencial. Sabe-se dessa verdade emblemática em si mesma pela cena dos coveiros a lançar caveiras para fora do chão como que a fazê-las "nascidas". Já não é a Vênus nascida das águas como em Botticelli que vem apresentar a verdade num mundo que perdeu seu sonho, mas a ninfa que a representa sucumbe à água como sucumbiria à terra da qual nunca, quiçá, deveria ter saído. Que o paralelo da mulher seja com a caveira é evidente quando Hamlet segura a caveira de Yorick e rememora a mulher que se maquia sem saber que tudo é vanitas.
O feminino é o sistema da exclusão: feminino é aquilo que existe para ser excluído. O feminino é a isca do estado de exceção: confinar a mulher em um não-ser político pela estética. A cena do afogamento de Ofélia na montagem em questão, cujas águas são simbolizadas por um véu, não poderia ser mais exata na definição do sistema do feminino. Ofélia simboliza todo o ofuscamento que o representa. É por isso que ela está posta no lugar arquitetônico exigido a uma mulher na tragédia. Nicole Loraux foi quem percebeu a existência de um motivo "altamente simbólico" para que uma mulher seja morta nos textos gregos. Seja o sacrifício das virgens, seja o suicídio das esposas, nenhuma mulher pode existir sem seu homem. Ela serve a uma ordem. Ofélia é a heroína suicidada de um mundo bem posterior, já sem deuses, no qual, no entanto, a ordem da servidão permanece. Não sabemos de sua versão dos fatos. Nem saberemos de seu suicídio: será realmente um acidente, ou será uma fuga da desgraça de desposar um histérico? Talvez, ironicamente, Shakespeare a tenha salvo de algo pior do que a morte.
Foi Gaston Bachelard em A água e os sonhos quem definiu a natureza da mais frágil das heroínas de Shakespeare: "A água é a pátria das ninfas vivas, é também a pátria das ninfas mortas. É a verdadeira matéria da morte bem feminina". Bachelard vê, "desde a primeira cena" entre Hamlet e Ofélia, o príncipe como uma espécie de assassino. O que é lógico de se pensar, pois que tanto maior é o suicídio de Ofélia quanto maior a culpa de Hamlet. Uma morte bem feminina é tão sem virilidade que nem pode ser escolha. Hamlet, para Bachelard, segue "a regra da preparação literária do suicídio -, como se fosse um adivinho que pressagia o destino, sai de seu profundo devaneio murmurando: eis a bela Ofélia! Ninfa, em tuas orações, lembra-te de todos os teus pecados". Ofélia é a ninfa, a mulher das águas que, a rigor, ainda não é mulher e, se levarmos a sério a hipótese do coveiro que se pronuncia na peça, nem chegou a ser, posto que, quando morta, já não é mulher. Ninfa, ela deverá "morrer pelos pecados de outrem" como diz Bachelard. Morrer como suas antecessoras trágicas, porque não há mulher sem o homem que a assuma. Mas quando uma mulher não se assume como guardiã do feminino, ela já não precisa da prisão simbólica a que, ontem como hoje, define também suicídios simbólicos altamente favoráveis para uma sociedade patriarcal que, ao esperar suicídios, comete assassinatos.
Melhor, no entanto, pensar em Hamlet hoje como um psicopompo. Aquele que conduz a uma morte necessária. O complexo de Ofélia que se define pela necessidade que tem uma mulher, sempre em queda nas águas da indefinição da própria identidade, de ser reconhecida por um homem para ser alguém: em tempo, que morra com ela.