Eis um dia típico de um jovem profissional, daqui a 20 anos. De manhã, ele tem uma reunião de trabalho. Enquan
por Flávia Yuri
Eis um dia típico de um jovem profissional, daqui a 20 anos. De manhã, ele tem uma reunião de trabalho. Enquanto é apresentado às pessoas, uma câmera acoplada a seus óculos as fotografa e envia as imagens para uma central. Em segundos, ele passa a escutar, por um chip próximo ao ouvido, as informações sobre aqueles profissionais e as empresas para as quais trabalham. Mais tarde, de volta do trabalho, atrasado para o jogo de futebol, ele não lembra onde pôs as chuteiras. Então ergue o pulso e ordena a um chip embutido na pele: "Encontre minhas chuteiras vermelhas". Em seguida, um sinal é emitido a todos os objetos da casa até que a chuteira emite um som.
No fim da noite, ele volta para casa exausto e faminto. Automaticamente, o computador central da casa informa à cozinha que, naquele horário, ele prefere peixe a carne. A banheira já o espera, há alguns minutos, com água na sua temperatura preferida. O ar-condicionado já deixou seu quarto na temperatura ideal, e o televisor é ligado no canal de esportes. Tudo isso feito por um único aparelhinho: o telefone celular. Ou melhor, sua evolução.
Num futuro muito próximo, essa coisa que conhecemos hoje como celular vai permear todas as atividades do dia-a-dia. Eu disse atividades? O celular deve permear a nós próprios. Quem quiser a versão do equipamento apenas para falar poderá tê-lo implantado sob a pele. Essa possibilidade é uma das aplicações esperadas pelos especialistas em segurança, que usariam o aparelho como um radar permanente de localização. Mas quem vai querer um aparelho que só fala? Dentro dos laboratórios de tecnologias do futuro da IBM, os primeiros testes de ambientes e objetos com inteligência já acontecem.
A empresa desenvolveu o que ela chama de ambiente atento, um local com sensibilidade e inteligência suficientes para se auto-ajustar a determinadas condições ou visitantes. Num ambiente como esse, o celular do futuro passa a se comunicar com a residência no momento em que o morador chega. "Atualmente, o celular é usado apenas para comunicação ativa, tendo o usuário como agente. No futuro, ele passará a se comunicar de forma passiva, sem a interferência do dono com o meio ambiente", afirma Fabio Gandour, gerente de novas tecnologias da IBM Brasil.
Por trás da ação desse objeto tecnologicamente onisciente estão desenvolvimentos de avançados sensores, algoritmos de cognição e uma gama de recursos de inteligência artificial. "O que chamamos hoje de celular funcionará como um secretário, com cérebro artificial e atitude pró-ativa", diz Celso Winik, gerente geral da divisão mobile da Microsoft.
Por que, entre tantas tecnologias, é o celular o centro de toda essa revolução? A explicação passa longe da tecnologia. Em tese, a unificação de inúmeras funções pode se dar a partir de qualquer um dos aparelhos. Se um celular pode tirar fotos, uma câmera fotográfica também pode fazer chamadas. Uma agenda eletrônica que faz ligações é tão boa quanto um celular que armazena dados.
Mas isso ocorre apenas em tese. Na prática, as evoluções bem-sucedidas são aquelas que ganham mercado. Que têm aceitação das pessoas. Por isso, é muito mais fácil um objeto simples ir ganhando, com o tempo, funções mais complexas, do que um objeto mais caro e sofisticado acoplar um mais popular. Essa lógica tornou o celular imbatível. Ele já é uma tecnologia considerada essencial. E seu sucesso já mudou o comportamento das pessoas.
O preço acessível é um dos fatores primordiais para a sua universalização. Mas não é só isso. Nenhum aparelho conquista tamanha aderência apenas por suas funções, nem pelo preço. Se o celular adquiriu esse grau de importância é porque ele responde às necessidades das pessoas. A maior delas é o desejo de estar sempre conectado.
No Brasil, o aparelho ganhou mercado a partir de 1998, com a privatização. E, em menos de uma década, já promoveu duas revoluções de comportamento. Primeiro, ele mudou a relação que as pessoas tinham com o telefone. O antigo aparelho pertencia à casa. O novo é um objeto de uso absolutamente pessoal. O hábito de atender e fazer ligações de qualquer lugar mudou a percepção do que é privacidade - as pessoas se constrangem cada vez menos em falar em público sobre questões estritamente pessoais. Quer comprovar? Passe uma hora em qualquer restaurante da cidade.
Além disso, o aparelho vem alterando a própria maneira de as pessoas se comunicarem. Teclar pelo celular tornou-se quase tão comum quanto falar. Já existe até uma linguagem própria do celular, que abrevia a gramática e cria novas expressões. Sem falar no que ele representa no imaginário dos jovens. O celular é, hoje, o que o automóvel representou nas décadas de 1950 e 1960.
Naquela época, os jovens exibiam seus carros nas ruas, personalizavam seus veículos com cores e acessórios diferenciados. Hoje, nas metrópoles cheias de trânsito, não há muito espaço para exibir carros. Os pequenos aparelhos é que assumem a função de símbolos de status. Não é à toa que adolescentes personalizam os toques de celular, enfeitam os aparelhos e trocam de modelo com freqüência cada vez maior.
Hoje, o único rival do celular como símbolo de status é o iPod, aparelho que revolucionou o jeito de a humanidade ouvir música. Mas a rivalidade não vai durar: o iPod está virando iPhone. Que outras tecnologias o celular vai engolir em dez ou 20 anos? E como elas vão alterar nossas vidas?
O lançamento do iPhone, da Apple, é um marco para o movimento de convergência no mundo sem fio. Integrando um minicomputador, com um MP3 player, com o telefone e mais dezenas de aplicativos, o aparelho é a materialização de promessas e previsões do mundo da tecnologia, que marca o início de uma nova era de possibilidades para o celular. O iPhone é o primeiro passo para o que o escritor americano de ficção científica Bruce Sterling, que agora escreve sobre design e tecnologia, chama de controle remoto para a vida. O celular controlando ambientes, funcionando como RG, passaporte, central de entretenimento e de trabalho.
É um caminho natural, pelo menos no que depende das expectativas dos principais interessados: os usuários. Uma pesquisa da Nokia feita em parceria com a consultoria ICM Research concluiu que 50% dos entrevistados pretendem utilizar a câmera do celular para substituir sua máquina fotográfica e que 77% deles querem ter o MP3 player junto com o aparelho de telefone.
No futuro, um celular deve ter tanta capacidade de armazenamento que uma versão ainda mais avançada de um equipamento como o iPhone poderá guardar cada trecho de canção nova criada e disponibilizada na internet. Nos serviços de música, o dono do aparelho não precisará mais parar para fazer o download de uma música ou de um vídeo. O celular vai conhecer as preferências de cada um, vai se comunicar com o servidor central das gravadoras ou de quem for o dono do título e fazer a atualização do banco de dados de novas canções. Sem a interferência do usuário.
Há quem pense ainda mais longe. Nos laboratórios da Motorola trabalha-se com a possibilidade de os celulares serem usados como gravadores da vida de seu dono. Cada segundo será armazenado pelo aparelho, de forma passiva, ou seja, sem a interação do usuário. Sempre que preciso, esse material seria usado para aplicações de segurança, para tirar a prova dos nove em processos contra acidentes etc. Seria a materialização da teoria do britânico George Orwell (1903-1950), sobre o Big Brother observando e registrando cada movimento da pessoa.
O telefone móvel deve sofrer alterações também justamente no que ele tem de mais básico: o uso da comunicação por células. O aparelho deve parar de usar somente a rede celular. A tecnologia vai tramitar sem tropeços (e sem que o usuário perceba) entre redes como Wi-Fi, WiMAX, cabeada ou via satélite - caso você esteja num vôo espacial. Para cada ambiente em que a pessoa entrar, ela encontrará uma tecnologia diferente, e o celular estará pronto para se comunicar com elas.
Sem o monopólio de uma única tecnologia, o modelo de cobrança no futuro deve ser totalmente diferente. O usuário deverá pagar uma taxa mensal e falar à vontade. Hoje, as operadoras Vodafone e British Telecom oferecem, em caráter de teste, uma opção similar na Inglaterra. Em casa, o aparelho usa a rede fixa - mais econômica. Fora, volta a funcionar como celular. Quais são as vantagens desse modelo? Praticidade por ter um único aparelho de telefone e preço final menor.
As empresas investem em design de acordo com o público e o tipo de uso que será feito do aparelho. Uma tendência futura é justamente o telefone começar a ser decomposto. O display será separado do corpo do aparelho, do teclado, do fone de ouvido. Se o seu dono quiser só falar ou ouvir música, ele pode usar o fone. Se quiser mandar e-mails, ele passa a usar o teclado e, para outras inúmeras aplicações, pode utilizar a tela do aparelho para navegar entre os aplicativos com touch screen (toque na tela). E todas essas peças separadamente poderão se comunicar com tecnologia sem fio.
O americano Don Norman, autor do livro "The Invisible Computer" (O Computador Invisível), afirma que no futuro o poder computacional vai estar tão distribuído entre o meio ambiente que os equipamentos em si desaparecerão. Nesse universo, tudo passa a se comunicar com tudo, pessoas com coisas, coisas com coisas. A dinâmica de relacionamentos também muda, defende o sociólogo polonês Zigmunt Bauman, em seu livro "Vida Líquida". É a chamada sociedade líquida, na qual as pessoas estão acessíveis em todos os momentos, numa rede cada vez mais ampla de relacionamentos, mas com relações mais rápidas e frágeis.
No campo da medicina, mulheres com o desejo de serem mães já se beneficiam de alguns aparelhos que diagnosticam o período fértil. Mas, quando o assunto é corpo humano, os usos da tecnologia vão muito além. A possibilidade de agregar algoritmos de inteligência artificial ao celular amplia os horizontes para diversos pacientes. Publicada na revista "Nature", uma técnica desenvolvida pela Cyberkinetics Neurotechnology Systems envolve o implante de um chip no cérebro que permite que o órgão de uma pessoa com paralisia mova o cursor do PC apenas com o pensamento. Uma experiência menos invasiva seria fixar eletrodos na cabeça para captar a atividade cerebral. Stuart Wolf, professor de física da Universidade de Virgínia, em entrevista à revista "The Economist", sugere que em 20 anos as pessoas não usarão os pensamentos para se comunicar apenas com máquinas, mas também com outras pessoas. É o celular sendo substituído pela telepatia.
Os celulares não serão apenas inteligentes, mas também sensíveis. Nos laboratórios de inteligência artificial há inúmeros projetos de sensores capazes de capturar minúsculas alterações na laringe e na boca, mesmo sem a passagem de ar. Em 20 anos, o celular poderá ler lábios usando um sensor acoplado a um colar. Hoje, recursos como text-to-speech (texto para a fala) e speech-to-text ampliam o uso de celulares para deficientes auditivos. Essa aplicação permite a conversão instantânea de uma ligação de voz numa mensagem escrita na telinha do aparelho e vice-versa.
A questão do armazenamento é a chave para que o aparelho celular receba cada vez mais funções. Há duas soluções possíveis para essa equação. A primeira é liberar o aparelho de ter de armazenar dados. Para isso, haveria um grande servidor central, acessível de qualquer lugar do planeta, de onde o telefone móvel poderia ir se alimentar da informação que precisasse. A outra possibilidade está no campo das tecnologias de miniaturização, que devem possibilitar armazenar um número cada vez maior de dados num espaço cada vez menor. A nanotecnologia - possibilidade de formação de novas estruturas no plano atômico - é a grande esperança dessa área. Empresas que produzem chips, o coração dos eletrônicos, investem pesado nesse campo.
O fato de o celular ter se transformado num objeto absolutamente pessoal mobilizou o uso do equipamento como forma de pagamento. Na Coréia, 500 mil estabelecimentos estão cadastrados para esse tipo de transação. No Japão, há 20 mil locais prontos para aceitar o celular como dinheiro. E no Brasil começam a pipocar testes. O Banco Real tem um projeto-piloto com dois tipos de operações. A primeira usa o celular como um cartão de crédito. É o que acontece em um ponto de táxi na avenida Paulista, em São Paulo. O valor da corrida é debitado na fatura do cartão de crédito do cliente, que autoriza a transação pelo celular.
Outro teste feito pelo banco está acontecendo em pequenos estabelecimentos na PUC-SP. Os alunos correntistas do banco podem efetuar pagamentos usando o celular em copiadoras, na lanchonete e em lojas, com débito direto em conta-corrente. O banco HSBC usou o cinema que leva seu nome, em São Paulo, para pôr seu primeiro teste de pagamento por celular para funcionar. Numa noite de promoção, seus correntistas puderam pagar os ingressos por meio do aparelho. Hoje, as lojas da Livraria Cultura aceitam celulares de clientes do banco para pagamentos. O Banco do Brasil, que possui 340 mil clientes cadastrados em seu mobile banking, promete para junho a estréia de seu sistema de pagamentos.
Com toda essa circulação de dinheiro virtual, surge a preocupação com segurança. E, por serem os alvos mais cobiçados, os bancos são os que mais investem em pesquisas na área. As empresas têm se precavido evitando que as informações financeiras trafeguem pelo ar. "Tudo fica nos sistemas do banco. A única troca feita entre os equipamentos é sonora, e não de dados", diz Maria Regina Botter, superintendente da área de cartões do Banco Real. Para aumentar a proteção, os celulares também se beneficiam da sofisticação dos mecanismos de criptografia e de segurança em dispositivos móveis.
No futuro distante, o próprio celular será também um mecanismo valioso de autenticação com avançados recursos de biometria. O equipamento poderá identificar quem você é não só pela impressão digital, mas também pelo formato da sua orelha, pelo tom de sua voz, pela temperatura de sua pele ou pela sua pressão arterial.
Com tantas possibilidades de aplicações, a questão é descobrir como o celular será chamado no futuro.
* Matéria extraída, na íntegra, do site da Revista Galileu (www.revistagalileu.com.br).