Teoria da involução

Supõe-se que a evolução não ande para trás. Mas uma manobra em marcha a ré pode representar o futuro de uma es

Redação   Publicado em 30/03/2007, às 13h56

Supõe-se que a evolução não ande para trás. Mas uma manobra em marcha a ré pode representar o futuro de uma espécie, inclusive a humana

por Michael La Plage


Todo ano, de outubro a abril, pescadores em Taiji, no Japão, juntam grupos de golfinhos e marsuínos (pequenos cetáceos) em baias rasas e os matam para transformá-los em comida. A cada ano, aproximadamente 20.000 animais são abatidos. A pesca poderia ter acabado com um tipo particular de golfinho, um nariz-de-garrafa que os cientistas agora chamam de AO-4, se os pescadores não tivessem notado algo bem peculiar a seu respeito.

O que salvou a vida do golfinho foi um par extra de nadadeiras. Além do já conhecido par frontal, o animal tinha outro nas costas. Especialistas foram rápidos em chamar a atenção para o fato de que as nadadeiras incomuns eram similares às vistas em fósseis muito antigos. "Ele se parece muito com os ancestrais do golfinho de 40 milhões de anos atrás", diz Johannes Thewissen, especialista em evolução de cetáceos da Faculdade de Medicina de Roostown, na Universidade de Ohio (EUA). A imprensa logo noticiou a descoberta e classificou o golfinho como uma "regressão evolucionária". A idéia é ótima para uma grande reportagem, mas há alguma credibilidade nela?

A descrição de um animal como uma "regressão evolucionária" é controversa. Na maior parte do século 20, os biólogos foram relutantes em usar o termo, conscientes do princípio de que "a evolução não pode caminhar para trás". Mas, quando mais e mais exemplos aparecem e a genética moderna entra em cena, tal princípio precisa ser reescrito. Regressões evolucionárias não só são possíveis como às vezes têm papel importante na marcha evolutiva.

O termo técnico para regressão evolucionária é atavismo - do latim atavus, ou antepassado. A palavra tem uma conotação horrorosa graças a Cesare Lombroso, um médico italiano do século 19. Ele argumentava que criminosos já nasciam criminosos, e podiam ser identificados por características físicas como testas mais baixas e braços longos, o que seria uma regressão ao primitivo.

Enquanto Lombroso estava ocupado medindo delinqüentes, um paleontólogo belga chamado Louis Dollo estudava fósseis e chegava à conclusão oposta. Em 1890, ele sugeriu que a evolução era irreversível. Para ele, "um organismo é incapaz de retornar, mesmo que parcialmente, a um estágio anterior, já vivido por seus antepassados". No começo do século 20, biólogos chegaram a uma conclusão parecida com o auxílio da probabilidade: não há razão para a evolução não andar para trás, é apenas muito pouco provável. Dessa forma, a idéia de irreversibilidade passou a ser conhecida como "Lei de Dollo". Se ela estiver correta, atavismos podem ocorrer muito raramente - isso se de fato ocorrerem.

Ainda assim, exceções brotam. Em 1919, por exemplo, uma baleia jubarte, com o que parecia ser um par de pernas com mais de um metro e com um conjunto completo de ossos, foi capturada na Ilha de Vancouver, no Canadá. À época, o explorador Roy Chapman Andrews argumentou que a baleia deveria ser a regressão de um antepassado que vivia na Terra. "Não consigo ver outra explicação", escreveu em 1921. Desde então, muitos outros exemplos foram descobertos. E não faz mais sentido dizer que a verdade absoluta da evolução é a irreversibilidade. Enfim, um quebra-cabeça se apresenta: como características que desapareceram há milhões de anos podem ressurgir de repente?

Em 1994, Rudolf Raff e colegas da Universidade de Indiana decidiram unir genética e probabilidade para analisar a questão. Primeiro, eles ponderaram que, enquanto algumas mudanças evolucionárias irreversíveis envolviam a perda de genes, outras poderiam ser resultado do desligamento genético. Se esses "genes silenciosos" fossem religados, características há muito perdidas poderiam reaparecer.

Depois, o time de Raff passou a calcular a probabilidade de isso acontecer. Genes silenciosos acumulam inúmeras mutações, o que pode torná-los inúteis. Então, quanto tempo um gene sobrevive em uma espécie se não é mais utilizado? A equipe estimou que existe uma boa chance de sobrevivência por mais de 6 milhões de anos em ao menos alguns indivíduos de uma população, e que esses genes podem conservar-se por mais de 10 milhões de anos. Assim, regressões são factíveis, mas apenas para esse passado evolucionário relativamente recente.

Como exemplo possível, o time chamou a atenção para um tipo de salamandra do México e da Califórnia. Como muitos anfíbios, ela começa a vida em um estado juvenil de "girino" e depois passa pela metamorfose que a leva à forma adulta - exceção feita a uma espécie, a axolote, que vive toda a sua vida no estado juvenil. Uma explicação simples para isso é que a linhagem da axolote, sozinha, perdeu a habilidade da metamorfose, enquanto outras a retiveram. Entretanto, uma análise detalhada da árvore genealógica das salamandras deixou claro que outras linhagens se desenvolveram de ancestrais que haviam abandonado aquela característica. Em outras palavras: a metamorfose em salamandras seria um atavismo. Na verdade, a metamorfose parece ter aparecido e desaparecido nesse grupo ao longo de 10 milhões de anos, com algumas espécies perdendo a habilidade apenas para que seus descendentes a recobrassem.

O exemplo da salamandra se encaixa no padrão de 10 milhões de anos de Raff. Contudo, exemplos recentes quebram esse limite de tempo, sugerindo que, talvez, os genes silenciosos não expliquem tudo. Em um trabalho publicado ano passado, o biólogo Gunter Wagner, da Universidade de Yale, relatou uma pesquisa realizada a partir da história evolucionária de um grupo de lagartixas chamado Bachia. Muitas delas têm membros minúsculos, parecendo mais cobras que lagartixas, e algumas perderam seus dedos nos membros posteriores - enquanto outras espécies têm quatro dedos nesses membros. Uma explicação simples é que linhagens com dedos nunca os perderam, mas Wagner insiste em discordar. De acordo com suas análises da árvore genealógica da Bachia, as espécies com dedos nos membros posteriores os desenvolveram a partir de ancestrais que não os tinham. E mais: as perdas e ganhos de dedos ocorreram mais de uma vez durante dezenas de milhares de anos. "Nesse caso em particular, provamos que a Lei de Dollo estava errada", diz o biólogo. Outro estudo recente sugere que o bicho-pau perdeu suas asas há 300 milhões de anos, apenas para que outras linhagens as apresentassem novamente em outros momentos.

Então, o que acontece? Uma possibilidade é de que as características de cada espécie se desenvolvem novamente do nada, assim como estruturas semelhantes podem aparecer de forma autónoma em espécies que não têm relação entre si, como a barbatana dorsal de tubarões e orcas. Outra possibilidade, ainda mais intrigante, é de que a informação genética necessária para fazer dedos e asas em lagartixas e bichos-pau sobreviveu, de alguma forma, por dezenas ou centenas de milhões de anos, e foi reativada. Tais características teriam se espalhado, revertendo a evolução efetivamente.

Mas, se genes silenciosos decaem num período de 6 a 10 milhões de anos, como características perdidas podem ser reativadas em lapsos de tempo mais longos? A resposta pode estar no útero.

Embriões muito novos, de várias espécies, desenvolvem traços ancestrais. Embriões de cobra, por exemplo, apresentam membros posteriores, assim como embriões de golfinhos e de baleias. Embriões humanos têm um início de cauda. Mais tarde, durante o desenvolvimento, essas características somem graças a instruções genéticas que dizem "perca uma perna" ou "perca a cauda".

Entretanto, se essas instruções não são seguidas, às vezes por causa de uma mutação, a característica ancestral pode não desaparecer. "Se isso acontecer, você pode obter o que é legitimamente chamado de atavismo", diz Wagner. Talvez tenha sido o que aconteceu com o golfinho japonês, e a hipótese pode explicar por que baleias e golfinhos adultos têm protuberâncias ossudas no lugar onde um dia estiveram os membros posteriores, por exemplo.

Então, por que retemos estruturas ancestrais e começamos a desenvolvê-las se elas serão descartadas depois? Em alguns casos, traços primitivos continuam a ter um papel no desenvolvimento. Por exemplo, embriões vertebrados apresentam a notocórdia, ou corda dorsal, uma espinha cartilaginosa similar à dos primeiros vertebrados, que funciona como modelo para a coluna vertebral. "Ela possui uma função embrionária vital, mesmo não tendo papel na vida adulta", diz Brian Hall, biólogo da Universidade de Dalhousie (Canadá).

Outras características embrionárias transitórias, como os membros posteriores de baleias, são mais difíceis de explicar. Talvez eles tenham um papel ainda não conhecido no desenvolvimento. Uma possibilidade, diz o biólogo desenvolvimentista Jonathan Slack, da Universidade de Bath (Reino Unido), é que eles estejam lá porque nunca houve pressão evolucionária para que fossem eliminados. "O osso da cauda está lá porque já estava lá, não porque existe uma função para ele", diz Slack.

Surge, então, uma nova pergunta: por que os genes silenciosos que iniciaram o desenvolvimento de um membro ou de uma cauda precisam ser ajustados? Bem, pode ser que eles não sejam realmente silenciosos.

Mesmo quando uma estrutura já não é mais necessária, os genes nela envolvidos podem ser conservados para a produção de outras partes do corpo. Como lembra Hall, não existe um gene para a perna ou para a cauda. Em vez disso, há genes que formam os padrões de suporte de várias estruturas. E muitos desses mesmos genes estão envolvidos na produção de outras partes do corpo. Em pássaros ou insetos, por exemplo, a composição genética das asas é uma variante daquela das pernas. Pêlos, dentes, penas e escamas são variantes de uma só composição - e é por isso que algumas disfunções fazem pêlo brotar na gengiva de pessoas. Resumindo, os genes necessários para a produção de uma característica há muito perdida não são sempre silenciosos, e podem sobreviver por bem mais do que o limite de 10 milhões de anos estimado por Raff. Portanto, é plausível que instruções genéticas antigas possam voltar de novo à vida.

Há alguns exemplos. Os pássaros perderam seus dentes por volta de 70 milhões de anos atrás. Ainda assim, Edward Kollar, da Universidade de Connecticut (EUA), conseguiu um jeito de manipular células de galinha e fazê-las desenvolver-se como dentes rudimentares, implantando-as no tecido da mandíbula de ratos em 1980. Kollar realizou seu experimento para mostrar que, de alguma forma, ele havia despertado uma instrução genética adormecida. Mas os resultados foram controversos: críticos sugeriram que os"dentes de galinha" eram um produto artificial. Eles foram calados no ano passado, quando John Fallon, da Universidade de Wisconsin (EUA), descobriu uma mutação que inicia o desenvolvimento de dentes similares aos dos crocodilos em embriões de galinha. "Eu seria cuidadoso", afirma Fallon, que fala de "estruturas similares a dentes" em vez de dentes. "Mas eu chamaria de atavismo", diz.

Mesmo que os genes dos dentes das galinhas tenham sobrevivido, isso não explica tudo. Ainda é surpreendente sua religação no lugar certo e na ordem certa para recriar uma característica perdida há tanto tempo. Fallon admite: "Eu não sei como isso é possível". Eis a próxima pergunta: se atavismos são regressões genuínas e aparecem em todo tipo de animal, como ficam os humanos? Separamo-nos dos chimpanzés há cerca de 6 milhões de anos e nos desenvolvemos rapidamente nesse período. Nossos dedos e palmas ficaram menores, e nossos dedões, maiores, mais fortes e flexíveis. Perdemos nossa pelagem e ganhamos mais glândulas sudoríparas. Tornamo-nos bípedes, desenvolvemos nossa linguagem e aprendemos habilidades cognitivas distintas.

Há muitos casos na literatura médica nos quais partes do corpo humano parecem ter revertido ao estado ancestral - de caninos grandes a dedos dos pés similares aos dos chimpanzés. Alguns comportamentos também indicam ser um tipo de regressão a um estado ancestral. Mas algum desses exemplos é mesmo atavismo? Até uma análise genética revelar se essas condições são reversões genuínas - em vez de desordens no desenvolvimento que acontecem para remontar traços ou comportamentos de símios -, é difícil falar com certeza. Mas existem casos em que as evidências apontam para uma conclusão firme.

Uma condição freqüentemente citada como um atavismo, por exemplo, é a "síndrome do lobisomem", ou hipertricose, na qual o rosto e outras partes do corpo são cobertas por pêlos espessos. Dê uma olhada em um chimpanzé ou em um gorila e veja que eles têm menos pêlos faciais do que muitos ecologistas. Existe até mesmo um relatório sobre um gibão - tipo de macaco sem pêlos no rosto - com hipertricose. Então, se isso é um atavismo, certamente não se trata de uma regressão aos nossos antepassados símios recentes.

Há síndromes comportamentais que também podem ser atavismos. Em 2002, pesquisadores da Universidade de Leiden (Holanda) sugeriram que a cataplexia, uma condição na qual uma emoção forte causa a frouxidão dos músculos, é uma regressão à "paralisia do medo" - experimentada por animais que congelam quando se deparam com faróis de carros, por exemplo. Da mesma forma, nosso hábito de mover os lábios enquanto executamos alguma tarefa complicada com nossas mãos pode ser um reflexo do comportamento de nossos antepassados símios, que geralmente usam suas mãos e bocas ao mesmo tempo. Porém, enquanto não entendermos a base genética de instintos e comportamentos, suposições como essas não poderão ser comprovadas.

Mas existe uma condição bizarra que é quase certamente um atavismo humano. Há mais de 100 relatórios na literatura médica sobre bebês que nasceram com caudas. Algumas não são nada além de uma extensão da coluna, mas outras são formadas por uma vértebra, ligamentos e músculo, e podem até se mover. Como a maioria das caudas é retirada após o nascimento, não sabemos se o movimento é ou não voluntário.

"É claro que isso é um atavismo", diz Bernhard Herrmann, do Instituto Max Plank para Genética Molecular, em Berlim (Alemanha), que estuda o desenvolvimento da coluna vertebral. "A habilidade de criar uma cauda aparece em todos os vertebrados. Enquanto o embrião se desenvolve e alonga, uma série de segmentos é estabelecida", diz. Os primeiros tornam-se o dorso, enquanto outros formam a cauda, mas o processo inicial é o mesmo - e o mesmo conjunto de genes é envolvido. Nos humanos o processo pára cedo. Mas o curso do alongamento pode continuar. "Há um mecanismo de medição de tempo inerente ao embrião, que causa a interrupção do crescimento da cauda no momento certo para cada espécie", diz Andrew Copp, do Instituto da Saúde da Criança em Londres, que identificou alguns genes envolvidos na constituição da cauda.

Uma vez formada, a cauda embrionária humana se autodestrói por meio de um processo programado de morte celular. E a cauda rudimentar visível em embriões de cinco semanas se funde para formar o cóccix. Caudas humanas podem resultar do alongamento excessivo do embrião ou de uma falha no sistema de autodestruição. Ou, ainda, de um pouco de ambos, já que as mutações responsáveis não foram identificadas.

Ainda não sabemos se essas caudas humanas são parecidas com as de nossos antepassados. Dentes fossilizados são tudo o que foi encontrado das espécies mais transitórias entre macacos e símios. Assim, quando e por que nossos ancestrais perderam a cauda continuam sendo um mistério.

É óbvio que os atavismos são muito mais comuns do que os biólogos supunham, quaisquer que sejam as condições capazes de provocá-los - e nós não saberemos suas razões até o mecanismo de cada um deles ser decifrado. Eles estão escondidos em nossos genomas, prontos para emergir se algo der errado durante nosso desenvolvimento. Em alguns casos, longe de serem um passo para trás, eles já provaram ser vantajosos e capazes de se disseminar por uma espécie, direcionando a evolução para frente e, ao mesmo tempo, fazendo-a ir para trás . Se tivermos que voltar a viver em árvores, nossas caudas há muito perdidas poderão ser bastante utéis.


* Matéria extraída, na íntegra, do site da Revista Galileu (www.revistagalileu.com.br).