Artigo sobre marketing, mercado e trabalho
Kate Domingos Publicado em 28/06/2016, às 09h53
Embora não tivesse o rosto iluminado por um smartphone em tempo integral, como nós hoje, Shakespeare já pensava no tempo como senhor, eminente e ditador, e na vida como um bobo que o diverte, o que nos soa mais familiar do que gostaríamos. Embora hoje a tecnologia pareça ditar o ritmo de nossas vidas, persistimos analógicos como os primeiros relógios, incapazes de marcar o tempo com precisão. Também, pudera, não somos precisos, precisão é para as máquinas e nós somos ironicamente orgânicos, pelo menos por enquanto. Embora vivamos no tempo das máquinas, ansiosos por nos manter, como elas, plugados em tempo integral, nos falta admitir que precisamos de algo que elas não precisam: tempo.
No início da Modernidade, chegou-se a achar que a sociedade pós-industrial nos traria (em virtude da automação e menor necessidade de intervenção humana no trabalho) a possibilidade e a valorização do tempo livre, um eldorado que libertaria as pessoas, deslocando o centro de suas preocupações para a família, a saúde e o desenvolvimento intelectual. Mas desde que o industrial cedeu lugar ao digital, o “ócio criativo” tornou-se ainda mais utópico e nós temos experimentado exatamente o oposto dele. Dormimos e acordamos ao som de nossos smartphones e já não vamos mais nem ao banheiro sem eles. O tempo se tornou uma preocupação, uma angústia, assunto que enche as prateleiras das livrarias e as telas do cinema, como ocorre no último roteiro futurista de Andrew Niccol (roteirista e diretor estadunidense), In time. A sociedade retratada na história é composta por pessoas que literalmente trabalham para ganhar tempo, a moeda corrente da sociedade. Tempo sem o qual um relógio geneticamente adicionado a seus corpos, e programado em contagem regressiva, chegará a zero, o que significa a morte de muitos nesse universo.
Hoje, o tempo livre se transformou em uma teoria tão indecifrável quanto a da relatividade. Precisamos “ganhar tempo”, “correr contra o tempo”, até porque “tempo é dinheiro” e “o tempo não para”. Na ânsia por aproveitar cada minuto, perdemos horas desenvolvendo mecanismos para fazer mais de uma coisa ao mesmo tempo. É a esperança de concluir logo todas as tarefas a que nos propomos, pois aí sim teremos tempo livre. Mas como descansar se levamos o chefe e o cliente no bolso e sempre há um novo alerta no celular para, compulsivamente, checar? Ainda que houvesse um tempo compulsório separado para o descanso e a reflexão, nós não poderíamos usufruir dele, pois quem seria capaz de se desplugar sabendo que há tantas tarefas urgentes? Afinal, todas elas são “para ontem” e já é hoje.
Se estar integralmente plugado não é mais questão de opção, era previsível que o indivíduo procurasse também entretenimento no meio digital. Mas estamos falando aqui de um entretenimento e lazer que não se traduz em descanso, nem tampouco se converte em pausa para reflexão. Um entretenimento com um fantástico potencial criativo e didático, porém veloz e fugaz demais, hipnotizante demais para promover o descanso e a reflexão. Não refletimos mais sobre nossa condição, sobre nossos objetivos e propósitos de vida, pois é preciso “parar para pensar” e nós estamos perigosamente perdendo a habilidade de “parar”. Pensar tem se tornado cada vez mais raro. É aí que nos transformamos em presas fáceis tanto para empresas que impõem rotinas de trabalho nocivas (e nos frustramos por não sermos valorizados como deveríamos, afinal estamos disponíveis em tempo integral!), quanto para o marketing digital, que usa a isca do entretenimento para roubar nosso tempo com vídeos divertidos que se iniciam automaticamente, técnicas que nos fazem permanecer em seus aplicativos e páginas da web por mais e mais tempo, games para conquistar nossa empatia e sobretudo nossas horas.
Embora o meio digital pareça mais vilão do que mocinho, seria primário penalizá-lo, já que a deficiência não está no meio, mas nos usos. Usando de forma inconsequente, vivemos o vício pelo instantâneo, pela ilusão de onipotência e onipresença que obtemos através do smartphone. Nesse contexto, simplesmente promover momentos de abstenção em relação aos dispositivos eletrônicos não é uma tentativa válida, pois embora procuremos culpados: os dispositivos eletrônicos, as empresas, o marketing. A real culpa só pode recair sobre nossa visão de mundo acerca do tempo, é ela que está distorcida: queremos esquecer que nossa natureza orgânica nos limita e preferimos ignorar que nosso tempo é limitado. Precisamos admitir essa limitação, pois sempre que alguém argumenta não ter tempo para adicionar à sua rotina determinada tarefa, é visto como incapaz de administrar seu cotidiano, desorganizado e até preguiçoso, o que nos leva a compulsivamente espremer tarefas e mais tarefas num tempo escasso e que, muitas vezes, deveria ser destinado a necessidades básicas como alimentação, sono e reflexão. Falta-nos humildade! Assumir o quanto precisamos de tempo pode ser o caminho para tornar a vida humana menos "boba" nessa corte.
Kate Domingos é publicitária pela USP, docente e consultora em Marketing e Comunicação. Contato: kate@concrie.com