Eu não quero falar com gente

Artigo sobre marketing, mercado e trabalho

Douglas Terenciano   Publicado em 08/12/2016, às 10h03

“Uber é a maior companhia de carros do mundo, mas não possui nenhum carro, Amazon é a maior empresa de varejo do mundo, mas não possui nenhuma loja”. O mundo está mudando, o que, há muito tempo, não é mais novidade. Porém, enquanto o comércio eletrônico se torna o principal comércio e a interação online se torna a principal interação, é interessante pensar o que nos impulsionou a isso. Se preferimos comprar, estudar, pedir um “táxi” ou providenciar o jantar através de um App, certamente já sentimos, como vantagem desse novo formato, o fato de não precisar lidar com a intervenção de uma outra pessoa. Não queremos falar com gente.

Essa verdade pode parecer incômoda, e admiti-la é um tanto constrangedor, porém não devemos olhá-la com cara de culpados. Se hoje evitamos o contato interpessoal em momentos de consumo é porque viemos de uma péssima experiência neste campo, gerada pelo antigo Marketing focado no produto, uma “filosofia” inaugurada com a revolução industrial e focada na Estratégia Push, que visava “empurrar” os produtos fabricados a qualquer custo, sem preocupação com a necessidade ou os desejos do cliente e sem qualquer assistência pós-venda.

A evolução deste primeiro momento do Marketing nos levou a um novo quadro, no qual surgiram grandes empresas com um discurso de valorização do cliente, apenas um discurso. Com elas vieram as operações de telemarketing, as longas esperas para atendimento ao telefone e os atendentes treinados não para a resolução de problemas, mas para a repetição de scripts. Esse tipo de abordagem não era natural para quem falava, e certamente não foi natural para quem ouvia. Ainda hoje leva aqueles na posição de clientes a uma irritante sensação de que não estão sendo ouvidos por um ser pensante, autônomo e realmente capaz para ajudar. Essas empresas não puderam oferecer mais e, de sua incapacidade, surgiria o embrião de uma ideia: se é para proporcionar um contato indiferenciado e automatizado, por que não fazê-lo por meio de uma máquina? Nesse sentido, aprimorar os complicados algoritmos de uma interface digital pode se tornar surpreendentemente simples, quando comparado à missão de aprimorar seres humanos na utilização de um script que os desumaniza.

É claro que nossa péssima experiência em falar com gente não é o único fator que impulsionou o boom do mercado online e a proliferação dos Apps, contudo foi fator decisivo para a perda, a transformação e o surgimento de funções no atual mercado de trabalho em torno desse novo contexto. Embora a logística para trocas tenha evoluído muito nas últimas décadas, com embalagens que, viradas pelo avesso, estão prontas para a devolução, como as da popular Netshoes,  e tudo aponte no sentido da virtualização, analistas alertam para o fato de que os consumidores mantêm a necessidade de tocar, sentir, experienciar o produto antes de se comprometer com ele e sua péssima experiência com o atendimento interpessoal no momento do consumo é um entrave real para isso.

Recentemente, a Amazon prometeu colocar em cena uma nova tecnologia que deve vir para revolucionar o setor de supermercados, testada inicialmente em uma loja em Seatle, chamada Amazon Go. Através de um aplicativo Amazon, utilizado pelo celular, a tecnologia irá monitorar tudo que é colocado no carrinho de compras e tirado dele, sem a necessidade de escaneamento dos produtos. Dessa forma, os clientes poderão simplesmente sair da loja ao terminar suas compras, sendo a cobrança feita automaticamente em conta. A bandeira da campanha da empresa é o fim das filas nos caixas, mas certamente a popularidade da novidade se beneficiará largamente com o fato de que, eliminados os checkouts, elimina-se a necessidade de falar com gente no momento do consumo.

Embora um expressivo contingente de consumidores veja o contato interpessoal no momento da venda como um incômodo ou uma intromissão, ele não deixará de ser, em muitos momentos de compra, necessário. Enxergando esta verdade, já é possível observar hoje empresas que buscam reverter os efeitos da experiência negativa vivida por seus mercados consumidores nesse campo, investindo em capital humano realmente humanizado na composição de sua linha de frente. A frase que inaugura esta reflexão, do executivo Wayne Arnold, nos mostra que o mundo muda rápido e caminha para a virtualização, porém o capital humano nunca foi tão valioso e não há nada de contraditório nisso. O mundo dos negócios virtuais tem plena consciência de que os grandes diferenciais só podem ser alcançados com os melhores players, no final, tudo se trata de pessoas.

É uma valiosa oportunidade para profissionais que gostam de gente e que serão pessoal e financeiramente cada vez mais valorizados. Num futuro próximo, serão demandados pelos consumidores como experts e consultores no momento de compra, pessoas capazes de orientar, opinar e ampliar em muito a experiência dos clientes sob um novo ponto de vista, desta vez, positivo.

Kate Domingos é publicitária pela USP, docente e consultora em Marketing  e Comunicação. Contato: kate@concrie.com