Artigo sobre marketing, mercado e trabalho
Kate Domingos Publicado em 12/07/2016, às 09h45
Se o futuro não é mais como era antigamente, todas as manhãs corremos o sério risco de acordar analfabetos. E foi assim que acordamos, na bela manhã que inaugurou a Era digital. Em um mundo amplamente globalizado, cujas fronteiras desmancham no ar, ter de adaptar-se à invasão dos então chamados estrangeirismos foi brincadeira de criança. Agora que a maioria de nós já pode se gabar por ter ampliado seu vocabulário com palavras como, “download”, “smartphone”, “touch screen”, “e-mail” e “on-line”, muitos pensaram que seria “ok” acordar na Era digital, mas a sensação é de ressaca. Como uma língua inteiramente nova, a internet inseriu em nossos cotidianos o incômodo de um certo analfabetismo digital.
É claro que sabemos operar nossos notebooks, tablets e a maioria dos incontáveis aplicativos que povoam nossos smartphones, mas precisamos admitir que muitos dos que hoje integram a chamada “população economicamente ativa” ainda permanecem analfabetos em relação a essa nova maneira de pensar, construir e criar que a Era digital inventou. É dessa invenção que vem a singularidade de pensamento de nossas crianças. Ao contrário do que preferimos imaginar, elas obviamente não nasceram sabendo, mas nasceram em um mundo em que tudo é mais intuitivo do que explicativo, mais lógico do que decoreba. Ao mesmo tempo que aprendiam a andar e a comer, aprenderam a deduzir e a enxergar padrões, por isso os smartphones lhes parecem tão óbvios e os indecifráveis controles (que prometem controlar o entretenimento da sala) não lhes representam desafio. Quem nunca implorou: “Filho, arruma aqui pra mim!”, (ou já entendeu que Minecraft não é só um game) que atire a primeira pedra.
A Geração Y, primeira a nascer na Era digital, já não pensa como seus pais, e não estamos falando de ter opiniões divergentes. Ela desenvolveu um particular mecanismo de articulação do pensar, os caminhos que sua mente percorre até uma solução ou constatação certamente não são os mesmos percorridos pelas mentes de passadas gerações e, no mercado de trabalho, já se pratica até o “mentoring reverso”. A neurociência (embora com estudos ainda incipientes nessa área) já fala em particularidades físicas ao se referir aos cérebros mais jovens, poderiam ser compostos por sinapses multiplicadas e mais complexas. Embora muito se tenha condenado (e ainda se condene) os games, não é possível negar que, se realmente for assim, eles são corresponsáveis por essa “evolução”, pois também é inegável que através deles se treina o imprevisível e a habilidade de reação e decisão. Afinal, o que é um game senão uma secessão de rápidas tomadas de decisão? Todos nessa geração sabem que a decisão errada leva ao “over” e que, realmente, as tecnologias moldam nossa forma de decidir, pensar e agir.
A internet encolheu o mundo, ao mesmo tempo que o tornou imenso. Ela o encolheu ao colocá-lo em nossas mãos, tudo ao alcance de um clique, ou melhor, de um “touch”. Mas também o tornou imenso e até amedrontador ao nos mostrar como ele é muito para nós. Muito para que possamos acompanhar, absorver e até compreender. Mais do que tentar abarcar toda a informação que essa infinita rede nos oferece (o que é impossível dada nossa finita capacidade de transformar tais informações em conhecimento) é preciso buscar compreender os novos mecanismos de raciocínio, criação e difusão de conhecimentos que a internet possibilita. Aprimorar-se nessa nova forma de pensar, baseada em intuição, dedução e interação é o que realmente importa nesse novo jogo, valiosíssimo sobretudo para o mercado de trabalho.
As inovações tecnológicas moldam nossa forma de pensar e agir, e esse fenômeno não é recente. Cada nova ferramenta influencia e até define a forma como nos comunicamos, trabalhamos, estudamos e nos entretemos a partir dali. A cada inovação, sólidas indústrias (telégrafos, filmes fotográficos, telefonia fixa, cds) e profissões que pareciam inabaláveis desaparecem sem cerimônia, tornam-se dispensáveis e até descabidas diante da nova forma de pensar. A cada inédita tecnologia, as especulações também aumentam. A chegada da TV já foi anunciada como o fim do rádio, a chegada da internet como o fim da TV, a chegada do tablet como o fim do livro, a do Netflix como o fim do entretenimento que não leva o selo “on the mand”.
Platão temia que a popularização dos livros isolaria as pessoas, fazendo-as tão concentradas no solitário ato de ler, que não mais haveria interação. Mas como todas as especulações que vieram depois, essa também não se confirmou, afinal a fascinante experiência da leitura trouxe a ânsia de dividir esse fascínio com outrem. Como os livros (nova tecnologia daquela época), as atuais tecnologias não vêm para isolar, para ameaçar e menos ainda para destruir negócios ou carreiras. Elas vêm para transformar nossas sinapses, cerebrais e relacionais. As mudanças trazidas por elas, como qualquer mudança, certamente gerarão um inicial analfabetismo e até certo incômodo. Porém, como nossa história nos mostra, são nos momentos em que nosso comodismo é perturbado que realizamos nossas maiores façanhas.
Kate Domingos é publicitária pela USP, docente e consultora em Marketing e Comunicação. Contato: kate@concrie.com