Muito mais que um faroeste caboclo

À mesa, estão o líder seringueiro Francisco Alves Mendes Filho, sua mulher, Izamar Mendes, os filhos, Sandino

Redação   Publicado em 02/03/2007, às 15h38

Como Chico Mendes fez uma questão regional nos cafundós da Amazônia virar uma causa universal


por Claudio Julio Tognolli

À mesa, estão o líder seringueiro Francisco Alves Mendes Filho, sua mulher, Izamar Mendes, os filhos, Sandino e Elenira, e os dois policiais encarregados de sua proteção. É a noite de 22 de dezembro de 1988, e o clima está ameno na casa simples da Dr. Batista de Morais, uma rua mal iluminada de Xapuri, no Acre. Tão ameno que, terminado seu prato, Chico se sente à vontade para atravessar desacompanhado os dois metros que separam a sua casa do banheiro, no quintal do fundo. Foi seu último erro. Do meio da escuridão, surge um homem com uma escopeta calibre 12 e dispara a queima-roupa. É um tiro só, mas com efeito devastador. Com cerca de 40 perfurações no peito, Chico se arrasta até a porta de casa. Balbucia: "Eu quero morrer na minha cama". Não deu tempo. Assim, aos 44 anos, morreu o homem. Assim, há quase duas décadas, nasceu o mito.

Chico Mendes projetou o nome da floresta amazônica na aldeia global como ninguém. O mundo voltou os seus olhos para os seringais e para a ecologia boreal do Brasil por obra e graça dele. Mas como isso se deu, numa época em que nem internet havia? Como o nome e a obra de Chico Mendes ficaram tão famosos no exterior? Como foi possível fazer com que um clamor e uma causa regionais ganhassem apelo universal?

Nada como alguém que vê a situação de fora para ajudar a responder questões como essas. James Cavallaro é brasilianista, professor de direito em Harvard e fundador no Brasil da ONG Justiça Global. Falando a Galileu, ele explica assim o fenômeno Chico Mendes. "A grande genialidade da causa dele estava na interseção que ele encontrou entre os direitos humanos e o movimento a favor do meio ambiente. Ele tornou essa causa célebre, por isso obteve tanto destaque internacional. Seu legado ficou mundialmente famoso porque ele lutava dentro da legalidade, sem nenhuma violência, contra a repressão, tão constante num país que na época era apenas supostamente democrático. A luta dele é muito importante até hoje, como um exemplo. Temos ainda muita violência. E o mundo em geral não avançou muito de lá para cá. Precisamos da união de forças sociais para combater ainda os mesmos problemas. E Chico Mendes era o gênio da união dessas forças."

Visto de dentro para fora, o legado do líder seringueiro põe o Brasil no centro de questões maiores da humanidade. O jornalista Leão Serva, que cobriu todo o julgamento dos assassinos de Chico Mendes, enfatiza isso. "No tribunal vi muito bem aquela definição que o ex-presidente FHC dava sobre o Brasil, que é a de um país que vive perenemente a contradição entre o moderno e o arcaico. O fórum de Xapuri era o arcaico. O advogado dos réus falava aquela linguagem dos doutores de terra de ninguém. A linguagem usada pela acusação e pela imprensa era a moderna. Aquele julgamento era uma cena de filme do Glauber Rocha. Naquele momento o Brasil não estava se importando muito para as questões ambientais. Tínhamos um país abrindo os olhos para a região Norte, a partir dos gigantescos incêndios ocorridos em Roraima entre 1986 e 1989. Chico teve a sapiência de ver que o Brasil é suscetível a pressões internacionais. Fez viagens aos EUA para apregoar o corte de financiamentos para o Brasil, caso não respeitássemos a ecologia e o meio ambiente. Ganhou prêmio na ONU. Foi o primeiro líder de direitos humanos a discursar no Congresso dos EUA."

Explicações bem mais modestas para a repercussão mundial da causa do líder vêm do seu braço direito, Gomercindo Rodrigues, assessor de Chico Mendes e autor do livro "Caminhando na Floresta". "Ele tinha o dom, a capacidade única de conversar com gente diferente, de diferentes facções. Ele simplesmente conversava com todo mundo. Já no Primeiro Encontro Nacional dos Seringueiros, em 1985, ele começou a articular algo interessante, um conceito de reservas extrativistas. Era uma idéia inteiramente nova. Isso porque, sejamos claros, os ambientalistas se limitavam a dizer que tínhamos de 'preservar a Amazônia', e o governo tinha aquele discurso segundo o qual tinha que 'desenvolver' a região, para, com isso, diminuir a pobreza e a miséria."

Além das opiniões, a própria biografia de Chico Mendes se incumbe de mostrar o porquê de sua importância. Ele saiu do anonimato com a fundação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia, em 1975. Ali, passou a ocupar o cargo de secretário-geral. No ano seguinte, engajou-se nas lutas dos seringueiros para impedir desmatamentos pela técnica dos "empates". Sempre feitos no verão, os "empates" eram ações coletivas que visavam impedir ("empatar") a ação dos peões encarregados da derrubada da mata. Um grupo de 100 a 200 pessoas - homens, mulheres e crianças - ia pacificamente aos acampamentos e tentava convencer os peões a abandonar as motosserras. Os "empates" de Chico Mendes em seringais de Xapuri chegaram a gerar desapropriações e a criação de reservas extrativistas controladas por seringueiros.

O sucesso na liderança dessas ações despertou nele outros interesses. Lentamente, ele se transforma num político sagaz e de ações precisas. Em 1977 participou da fundação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri. Foi o suficiente para levá-lo à vitória na eleição que deu a ele um posto de vereador na Câmara Municipal de Xapuri, pelo MDB, no ano seguinte. Neste momento, ele passa a despertar ainda mais atenção e surgem então as primeiras ameaças de morte.

Já nesse tempo, as questões de Xapuri tinham um apelo universal para o, agora, vereador. Tanto que, em 1979, ele converte a Câmara Municipal em foro de debates sobre violência agrária e questões ambientais. A parceria com o MDB termina no ano seguinte, quando surge o PT, que teve em Chico um de seus fundadores. Isso torna ainda mais radical a oposição - do governo e dos fazendeiros - às suas idéias. Em 1980, ele foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional, numa armação de fazendeiros que tentavam acusá-lo da morte daquele que o precedeu como vítima de tocaia: Wilson Pinheiro, presidente do Sindicato dos Trabalhadores de Brasiléia. Passado o susto, em 1981 Chico assumiu a direção do Sindicato de Xapuri. Pronto, estava dada a largada do processo que fez a sua estrela brilhar para o mundo.

Em outubro de 1985, liderou o Primeiro Encontro Nacional dos Seringueiros, que deu à luz o Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS). Sua insistente retórica em defesa da "união dos povos da floresta" passa a reverberar nos quatro cantos do globo. Tanto que, em 1987, ele recebe a visita de alguns membros da ONU, em Xapuri, onde puderam ver de perto a devastação da floresta e a expulsão dos seringueiros causada por projetos financiados por bancos internacionais.

Sua página na internet sugere que é exatamente este o ponto que o transforma em alvo político. "Dois meses depois da visita, Chico Mendes levava essas denúncias ao Senado norte-americano e à reunião de um banco financiador, o BID. Trinta dias depois, os financiamentos aos projetos devastadores são suspensos, e Chico é acusado por fazendeiros e políticos de prejudicar o 'progresso' do Estado do Acre. Meses depois, Chico Mendes começa a receber vários prêmios e reconhecimentos, nacionais e internacionais, como uma das pessoas que mais se destacaram naquele ano em defesa da ecologia, como por exemplo o prêmio 'Global 500', oferecido pela própria ONU", diz um texto no site.

E assim chegamos a 1988, ano em que ele implantou uma das primeiras reservas extrativistas no Acre. Conseguiu também aquela que pode ser considerada a sua sentença de morte: a obtenção de uma intrépida desapropriação do seringal Cachoeira, de Darly Alves da Silva, em Xapuri. Nesse ponto, as ameaças de morte ganharam tanta intensidade que se fez necessária a proteção policial para tentar impedir o disparo da noite de 22 de dezembro. Como ela não funcionou, logo após o tiro teve início a busca por quem teria cumprido a ameaça.

A morte do líder seringueiro chocou, mas não surpreendeu muita gente. Fora aqueles que estavam na cena do crime, duas pessoas foram as primeiras a saber do assassinato de Chico Mendes. Uma delas é o deputado federal Fernando Gabeira, amigo fraternal do seringueiro e que antevia o fim trágico. "Ele era meu amigo, muito meu amigo. Era uma pessoa boa, tranqüila e que buscava apoio. Ele vivia sempre numa situação muito difícil, sabia que era sempre ameaçado. Na véspera do assassinato dele, nós mandamos, pela 'Folha de S.Paulo', a atriz Lucélia Santos para fazer uma edição especial sobre ele", diz Gabeira.

Outro dos primeiros a receber a notícia da morte, Gomercindo lembra que "Chico estava marcado para morrer havia muito, desde 1970, quando escapou de suas primeiras emboscadas. O pioneiro no quesito vítima de assassinos entocaiados foi Wilson Pinheiro, que era a maior liderança e foi morto em Brasiléia, no dia 21 de julho de 1980, no início da noite, dentro do sindicato. Após o assassinato, caiu muito o movimento em Brasiléia. Mas, como Chico era um aglutinador, conseguiu puxar o centro da luta contra a devastação para Xapuri, onde o movimento dos trabalhadores rurais cresceu muito. Os exploradores não estavam preparados para isso, como por exemplo o grupo Bordon, que fez seu 'último desmatamento' de 700 hectares do seringal em Nazaré entre 1986 e 1987, retirando-se em função dos 'empates' realizados pelos seringueiros e 'vendendo' sua terra. Os caras que matam gostavam de matar no local, para poder mostrar força, que quem é contra morre".

Pensar que a morte do líder seringueiro diminuiria o alcance da sua causa foi o maior erro de seus algozes. Pelo contrário. O julgamento dos assassinos Darly Alves da Silva e Darcy Alves Pereira atraiu para Xapuri, a 187 quilômetros de Rio Branco, cerca de 3 mil pessoas, entre políticos, seringueiros, ecologistas, estudantes e representantes de organismos internacionais ligados à causa dos direitos humanos e do meio ambiente. Na época, a cidade tinha 5 mil habitantes. A cobertura da imprensa reuniu mais de 200 jornalistas do mundo inteiro.

O julgamento durou de 12 a 15 de dezembro de 1990. A mais importante prova material contra o principal acusado, Darcy Alves Pereira, foi um fio de cabelo castanho, de 6,2 cm, encontrado numa capa de chuva preta, recolhida pela polícia no quintal da casa de Chico Mendes. O perito Nelson Massini, autor do laudo necroscópico, comparou esse fio a um punhado de outros retirados da cabeça do réu. "Os cabelos de Darcy coincidem laboratorialmente com o fio encontrado na capa preta, o que nos autoriza dizer com segurança que a capa já havia sido utilizada por ele", afirmou no laudo. Em entrevista a Galileu, o perito revela um detalhe inédito: "Quando exumei o corpo de Chico Mendes, vi em seu peito um material amorfo e pus no microscópio. Ampliei: o projétil disparado contra ele raspou numa árvore, e a planta entrou no peito dele. Eu disse no júri e repito aqui: 'O Chico Mendes levou no peito um pedaço da floresta que ele tanto defendia'".

Com base nos laudos de Massini e os depoimentos das testemunhas, às 23 horas (2 da madrugada no horário de Brasília) do dia 15 de dezembro de 1990, os sete jurados consideraram os réus culpados, por unanimidade. Darly Alves da Silva e Darcy Alves Pereira foram condenados a 19 anos de prisão. O juiz considerou as agravantes do crime, cometido de modo torpe e por motivo fútil, em emboscada, além de ter sido premeditado.

Caso encerrado, bandidos condenados e presos. Tudo resolvido? Claro que não. Talvez o maior legado de Chico Mendes seja a lembrança recorrente de que há muito ainda a ser feito pelos povos da floresta. "Hoje acho que ainda falta muita coisa: educação, saúde e mais mercado para o produtor da floresta; conseguimos apenas uma pequena parte. A luta agora é resgatar as idéias de Chico, cuja base principal é desenvolver sem destruir. Mas sabemos hoje que o seringueiro é o guardião da floresta, ele não pode ir para a cidade. Os filhos dele não podem partir, precisam de tecnologia para ficarem na floresta, com qualidade de vida, e serem os guardiões dela, pois, enquanto houver seringueiros, ribeirinhos, índios e outras populações tradicionais, ainda haverá floresta", afirma Gomercindo.


* Matéria extraída, na íntegra, do site da Revista Galileu (www.revistagalileu.com.br).