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O Estado e a interferência na convivência familiar

O Brasil avança muito nas discussões democráticas sobre as novas formas familiares e a convivência de seus membros. Há de se considerar avanços necessários para garantir a formação da família, preservando diferenças e assegurando direitos constitucio

Redação
Publicado em 01/09/2014, às 11h59

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Duarte Moreira
As relações familiares, ao longo da história, têm sido objeto de debates legislativos, que resultam novas leis ou entendimentos jurídicos. O Brasil avança muito nas discussões democráticas sobre as novas formas familiares e a convivência de seus membros.
Há de se considerar avanços necessários para garantir a formação da família, preservando diferenças e assegurando direitos constitucionais de cada cidadão.
Os tabus aos poucos estão sendo vencidos, com reconhecimento legal da composição familiar.  Na esteira das novas leis, uma que causa grande impacto social é a Lei Maria da Penha. A violência, no âmbito doméstico, explícita ou velada, atinge no Brasil dados alarmantes. Estudo preliminar do Ipea estima que, entre 2009 e 2011, o Brasil registrou 16,9 mil feminicídios, ou seja, “mortes de mulheres por conflito de gênero”, especialmente em casos de agressão perpetrada por parceiros íntimos. Esse número indica uma taxa de 5,8 casos para cada grupo de 100 mil mulheres.
Na prática da aplicação da Lei Maria da Penha existe uma realidade nova, não pensada pelo legislador, que envolve questões fundamentais do Estado e sua interferência no âmbito familiar. Trata-se da “Integridade física e violência doméstica, no âmbito das famílias, sob a ótica Constitucional”, uma tese defendida pelo Juiz Criminal de Cotia - São Paulo, Sérgio Augusto Duarte Moreira.
Para Dr. Sergio Moreira, o Código Penal, no capítulo “Dos Crimes Contra a Pessoa”, penaliza os crimes de lesões corporais, que ferem a integridade e a saúde das pessoas. Neste âmbito, estão incluídas todas as agressões entre familiares e não apenas contra a mulher. Todavia, na questão da interpretação da lesão corporal, o juiz Sérgio Moreira, explica: “A evolução social até a atual sociedade, em que vivemos, trouxe modificações na interpretação dos fatos em concreto. A integridade física que era tida como um bem absolutamente indisponível passou por uma evolução interpretativa social e doutrinária. Atualmente, a integridade física não pode ser considerada como um bem absolutamente indisponível e sim como um bem relativamente disponível. Em se tratando de lesões leves é pacífico o entendimento que a aquiescência prévia ou concomitante da vítima é causa supra legal excludente da tipicidade penal”.
Entende o juiz que se há consentimento da lesão corporal de natureza leve, não existe crime penal. 
Ora, se a vítima tem a prerrogativa de dispor de forma prévia ou concomitante de sua integridade física é nítido que tem a mesma faculdade de fazê-lo de forma posterior, dando o seu consentimento. Isto porque ou se pode dispor ou não se pode dispor de um bem. Aliás, entendemos que foi nesse o sentido a medida de Política Criminal que levou o legislador a transmudar a natureza da ação de pública incondicionada para pública condicionada, a representação no caso de lesões leves, modificação que se deu por meio da lei 9.099/1995.
O Magistrado cita como exemplos o caso dos tatuadores e colocadores de piercings, os quais não cometem crime por causa do consentimento dado pelas pessoas: “Em se tratando de lesões leves é pacífico o entendimento que a aquiescência prévia ou concomitante da vítima é causa supralegal excludente da tipicidade penal. Do contrário, se assim não fosse, todos os tatuadores, colocadores de piercing, brincos e similares, teriam que ser processados e condenados pelo fato típico de lesão corporal. Ocorre que inexiste a tipicidade material nestes casos, que é a efetiva lesão ao bem jurídico tutelado, permanecendo apenas a tipicidade formal que é o mero ajuste (subsunção do fato a norma) da conduta praticada com o que preceitua a norma jurídica sem, contudo, ofender o bem jurídico protegido pelo Direito Penal. Uma vez que a finalidade do Direito Penal é a proteção aos bens jurídicos, não há tipicidade penal sem que haja efetiva ofensa ao bem tutelado, eis que, por óbvio, não se é preciso proteger algo que não é alvo de ofensas. Como dito, é pacífico que a aceitação prévia e/ou concomitante ao fato, no caso de lesões leves, afasta a tipicidade penal. Nos exemplos fornecidos, resta claro que aquele que se dirige ao tatuador ou, ali se encontra, quando este inicia sua ação, através de agulhas furando aquele, não há crime por conta do consentimento prévio/concomitante da vítima, a qual deseja a ação lesiva. De outra banda imaginemos um tatuador que venha se aproveitar de um estado de inconsciência de sua namorada para tatuar sua alcunha ou outra pintura em alguma parte do corpo desta. Por não haver o consentimento, em regra, esta seria uma ação típica, penalmente incriminada. Neste caso, imaginemos, que quando do retorno da consciência da namorada, que teve a lesão deflagrada, esta ao olhar o trabalho feito fique admirada e muito feliz com a pintura e consinta, de forma posterior, com o que foi feito. Poderíamos considerar essa conduta criminosa?”  Neste sentido, aprofunda sua tese sobre questões que envolvem as agressões leves entre pessoas de uma família. 
O consentimento da vítima seja anterior, concomitante ou posterior ao fato, é causa excludente supra legal! Do contrário estaremos diante do Estado Autoritário que intervém na tutela do particular, o qual não quer ser tutelado. Não há bem jurídico a ser tutelado, se o bem está na esfera de disponibilidade e o próprio detentor da proteção não deseja essa proteção em um determinado caso específico! Há que se observar o caso concreto sempre a luz dos Princípios da Fragmentariedade, Subsidiariedade e Intervenção Mínima, todos basilares do Direito Penal. 
Portanto, em certos casos de violência doméstica, no qual a vítima, por livre vontade, desiste de punir o agressor, o Estado não pode impor uma pena criminal, conforme determina, por exemplo, a Lei Maria da Penha.
A nossa Constituição Federal, em seu artigo 226, elegeu a família como a base da sociedade, conferindo especial proteção do Estado. Deste dispositivo, a doutrina moderna extraiu os Princípios da Máxima Proteção e da Mínima Intervenção do Estado dentro das famílias. O Constituinte é claro em conferir especial proteção à família, sem que o Estado cause verdadeira ingerência no âmbito dos lares, que elegeu como base da sociedade. Uma vez que vige o Princípio da Mínima Intervenção Estatal, nas relações familiares, não pode o Estado tolher da vítima mulher o seu livre arbítrio de dispor relativamente de sua integridade física, no intuito da preservação do seio familiar. Extirpar esse direito da vítima é o total desrespeito ao mandamento Constitucional. Se for um desejo da vítima mulher perdoar o ofendido e regressar ou não ao convívio com este, como pode o Estado impor uma punição dentro do núcleo familiar, em total contradição com o desejo da mulher-vítima. Essa ingerência obrigatória do Estado por certo só viria a destruir com a única possibilidade de reconciliação familiar, vínculo este que o Estado deve proteger e não destruir por completo.  
Em análise final, o juiz Sergio Moreira afirma como o Estado pode condenar uma família à destruição total, quando ela poderia ser recomposta. Defende a aplicação do artigo 129, § 9º do Código Penal, quando há reconciliação após o fato gerador, sem aplicar as penas da Lei Maria da Penha.
Os efeitos de uma condenação criminal num caso de tentativa de reconciliação familiar são nefastos. No caso de famílias que possuem descendentes, os efeitos são imensuráveis, eis que transbordam a esfera da vítima e agressor, vindo a atingir por via reflexa, a prole que sofrerá com a ruptura completa do bom convívio de seus genitores. Assim, há que se dar uma interpretação conforme a Constituição Federal ao tipo do artigo 129, bem como o seu § 9º, ambos do Código Penal, restringindo o alcance destes dispositivos, nos casos concretos em que houver a aquiescência posterior ao fato, pela vítima, reconhecendo-se assim a existência da causa supra legal de exclusão da tipicidade penal pelo consentimento da vítima. Não há que se falar tampouco na desconsideração da Lei Maria da Penha. Muito pelo contrário, é conceder a mulher-vítima uma maior garantia e proteção. A mulher sempre gozará do manto protetor da lei, porém estará na esfera desta, a avaliação em concreto se a lesão sofrida pode ser perdoada e contar com o seu consentimento posterior, como uma causa supra legal de exclusão da tipicidade. A interpretação do juiz Sergio Moreira revela a preocupação com as garantias básicas da Constituição, sem o Estado sobrepor nas decisões familiares, permitindo o direito de reconsiderar uma situação de conflito, para refazer o núcleo familiar, o que hoje não ocorre quando há uma ação criminal em andamento. 
O enfoque desta análise preserva a vítima, a qual tem livre arbítrio, capacidade de avaliar e dispor de sua própria integridade física, por meio de um consentimento posterior ao fato. Retirar essa capacidade da mulher é torná-la novamente vítima, mas agora uma vítima do Estado Autoritário, o qual aplica de forma implacável seu “jus puniendi” destruindo por completo as chances de uma reestruturação familiar. Assim, a ausência de tipicidade material pode ser aplicada com base na Constituição Federal e, em consonância com a própria Lei Maria da Penha, que no bojo de seu artigo 3º, assegura a todas as mulheres os direitos a liberdade, dignidade, respeito e a convivência familiar. A dignidade da mulher é resguardada ao se preservar o seu direito de consentir de forma posterior, assim como é assegurado o respeito ao seu livre arbítrio sem a ingerência Estatal. Por fim, a maior parte dos casos de violência doméstica, em que deflagrado processo criminal, a vítima mulher se arrepende de ter dado início ao procedimento e não tem interesse no prosseguimento da ação, eis que torna a viver com o seu agressor e restabelece a família. Nestes casos, que são a maioria, uma sentença condenatória não traria a paz social que se espera, muito pelo contrário, contribuiria para a destruição por completo da base da sociedade, que fala o artigo 226 de nossa Carta Magna! 
Defende o juiz Sergio Moreira que a penalização dos crimes de violência doméstica, especificamente contra a mulher, tenha uma nova possibilidade de interpretação, aceitando a reconstrução da família, quando a vítima assim entender ser possível; e produzindo, ainda, grande impacto na redução de processos criminais, em andamento, no Brasil.
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