O professor Damásio de Jesus analisa a Lei n.12.650, de 17 de maio de 2012, que fez alterações pontuais no Código Penal. Para ele, a mudança não observou o princípio da harmonia do sistema penal, aumentando o caos legislativo
Damásio de Jesus
Não cuida este trabalho de defender autores de violência sexual contra a mulher, crianças e adolescentes, mas de pugnar por uma legislação penal clara, harmoniosa e justa
A Lei n.12.650, de 17 de maio de 2012, fez mais uma alteração pontual do Código Penal, introduzindo um novo termo inicial da prescrição da pretensão punitiva (art. 111, V). Como outras, embora a intenção tenha sido louvável, não observou o princípio da harmonia do sistema penal, aumentando o caos legislativo.
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Determina o texto que, nos crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes, o prazo prescricional da pretensão punitiva, isto é, o anterior ao trânsito em julgado da sentença final, começa a correr somente “da data em que a vítima completar 18 anos, salvo se a esse tempo já houver sido proposta a ação penal”.
Criou-se mais uma exceção ao princípio secular de que a prescrição começa a correr no dia do momento consumativo do crime (da conduta ou do resultado). Já tínhamos uma, a de que nos delitos de bigamia e de falsificação de assentamento de registro civil o prazo corre a partir “da data em que o fato se tornou conhecido” (art. 111, d), merecendo a crítica de que permite injustiças, exclui da severidade infrações de maior gravidade e não explica em que data o fato se torna conhecido. A segunda exceção, a da lei nova, para não ficar atrás, atropelou também a doutrina e a harmonia do sistema legislativo. Padece dos mesmos defeitos: boa intenção e redação e conteúdo defeituosos.
Compreende-se a preocupação do legislador com a prática de crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes, cuja punição severa foi determinada pela Constituição Federal. Esta, porém, não determinou também maior rigor no tratamento de outros crimes, como os hediondos? Por que, nestes, a lei nova só preferiu os cometidos contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes, como o estupro, afastando do novo termo inicial delitos de maior gravidade, como o latrocínio? E se for uma idosa? Ou crime contra a dignidade sexual de deficiente mental ou vítima portadora de enfermidade, a qual, por essas causas, não tem o necessário discernimento para a prática do ato?
Desproporções causadas pelo texto recente não são difíceis de aparecer. Suponha-se que o autor pratique ato de libidinagem, hoje estupro de vulnerável, com uma menina de 8 anos de idade, sujeitando-se à pena máxima de 15 anos de reclusão (art. 217-A, caput, do CP), com prescrição em 20 anos (art. 109, I, do CP). De acordo com a lei nova, tendo silenciado a vítima, os 20 anos somente começarão a ser contados quando ela completar 18 anos de idade. Quer dizer: quanto menos idade tiver a ofendida ao tempo do crime, maior será o prazo para início da persecução penal. No caso, a notitia criminis poderá ser levada ao conhecimento da autoridade pública até a ofendida completar 38 anos de idade, 30 anos depois da prática do ato libidinoso. E, tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, a autoridade deverá agir. Se não agir, haverá prevaricação?
E se houvesse crime de latrocínio de autoria desconhecida? A prescrição seria de 20 anos. Não deixa de ser estranho: se o sujeito pratica ato de libidinagem com a vítima, crime hediondo, com pena máxima de 15 anos de reclusão, a prescrição pode ser superior a 30 anos; se a mata para roubar, sendo também hediondo o delito, com pena máxima de 30 anos de reclusão, a prescrição é de 20 anos.
A exceção do inc. V era desnecessária (“salvo se a esse tempo já houver sido proposta a ação penal”). Ora, é óbvio que, se ao tempo de a vítima completar 18 anos de idade já houver ação penal, não haverá necessidade de um novo termo inicial, pois deve ser considerado o comum (art. 111, I) e as causas interruptivas cuidam disso (art. 117 do CP). O texto, pretendendo ser declarativo, foi confuso.
Em que dia se considera “proposta” a ação penal? Na data do oferecimento da denúncia? Ou de seu recebimento? Por que a lei não foi mais clara, mencionando oferecimento da denúncia ou seu recebimento?
Respeitando opiniões contrárias, entendemos que a ação penal se considera proposta no dia em que é oferecida a denúncia pelo Ministério Público. O Promotor de Justiça “propõe” a ação penal com o oferecimento da denúncia (Min. Celso de Mello, RTJ 107/911). Se o texto cuidasse de “recebimento”, seria mais inútil ainda, pois estaria interrompida a prescrição pelo mesmo prazo (art. 117, I).
E se ocorrer colisão de interesses entre o sujeito passivo e o Estado? No exemplo da vítima vulnerável estuprada quando possuía 8 anos de idade, com pena máxima de 15 anos de reclusão e prescrição em 20 anos, suponha-se que ela, aos 37 anos de idade, narre o fato a um terceiro e este o comunique à autoridade policial. Poderá ser iniciada a persecução penal? De acordo com o novo texto, sim. E se a vítima não quiser? Nos termos da legislação, tratando-se de crime de ação penal incondicionada, o delegado de Polícia deve instaurar inquérito policial e o promotor de Justiça oferecer denúncia. Qual o interesse de agir do promotor de Justiça? Como provar o fato?
E se houver uma causa impeditiva da prescrição, como o cumprimento de pena no estrangeiro (art. 116, II, do CP)? No exemplo acima, o prazo de 20 anos não terá início enquanto o condenado não satisfizer a punição imposta no exterior.
E se a vítima falecer antes de completar 18 anos de idade? Não se aplica o inc. V, pois o legislador exigiu, para que se tenha em vista o novo termo inicial da prescrição, um dado objetivo, qual seja o de ela completar 18 anos de idade. Incide o termo inicial comum do prazo prescricional (art. 111, I e II).
E se a vítima falecer depois de completar 18 anos de idade? Aplica-se o novo texto. A circunstância de a vítima haver completado 18 anos de idade satisfaz os requisitos do inc. V. De modo que fato superveniente, como sua morte, não altera o termo inicial do prazo prescricional da pretensão punitiva.
Damásio de Jesus é advogado, professor de Direito Penal, Presidente do Complexo Educacional Damásio de Jesus e Diretor-Geral da Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Recebeu o Prêmio Costa e Silva e o Colar D. Pedro I, é Doutor Honoris Causa em Direito pela Universidade de Estudos de Salerno (Itália) e autor de livros na área criminal.
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