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Depois do pôr-do-sol

Era bom quando brincava de bonecas com as amigas da rua, jogava barrabol ou assava biscoitos no fogãozinho...

Redação
Publicado em 25/09/2009, às 11h07

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Era bom quando brincava de bonecas com as amigas da rua, jogava barrabol ou assava biscoitos no fogãozinho de brinquedo que ganhara do pai. Quando corria com os filhos do marceneiro e da professora pelo terreno baldio, onde havia, enjeitado e solitário, um carro alaranjado de ferrugem e velhice. E quando, na escola, todos se sentavam em volta da grande mesa e diziam suas lições, suas dúvidas, suas ideias de mundo. Ou quando, na volta da missa da igreja de São Luís, descia a rua Haddock Lobo, entre outras moças e senhoras com seus chapéus de abas largas, até a porta de sua casa, na rua Augusta, bem perto da alameda Tietê.

Dorina havia vivido dezessete anos até 1936, numa São Paulo de bondes e casarões, mais de vinte anos antes da fabricação do primeiro Fusca brasileiro. Em um dia nunca esquecido, assim de repente, sem qualquer explicação, o olho direito não viu mais nada. Nada, nada mesmo, como uma câmera que deixa de funcionar ou uma janela que se cobre com uma persiana. E, a última imagem que Dorina viu foi sangue escorrendo pelo olho que lhe restara intacto, o esquerdo, enquanto contemplava a fotografia de um navio, que partia rumo à Europa. Diz que “foi como chuva escorrendo no vidro, com uma lágrima embaixo”. Uma hemorragia que apagou o mundo e lhe condenou a um túnel sem promessa de luz no final. Ouviu do oculista que a cegueira era irreversível, embora a causa seja um mistério até hoje.

Nascera em 1919, um ano depois do fim da Primeira Grande Guerra, filha de um português sério e exigente, mas que a cercava de carinho, de coisas bonitas de ver, de livros. Tinha em casa também a mãe e mais dois irmãos – o menor muito levado, e a mais velha, tão querida, que ajudou a criá-la e a tinha como boneca. São suas lembranças ainda em cores. “Oh! Que saudades que tenho da aurora da minha vida, da minha infância querida, que os anos não trazem mais”, ela declama o saudosista Casimiro de Abreu. Mais adiante, diz que “a felicidade é como um pomo, que nunca pomos onde nós estamos, e nunca estamos onde nós o pomos”, uma poesia de Vicente de Carvalho. Dorina sempre gostou de poesia, e afirma, convicta, que a encontramos diariamente por aí, espalhada nos quatro cantos da vida. Gosta de contemplar palavras, e algumas chega até a repetir, para saboreá-las como se fizessem parte de um cardápio. Gostava do pôr-do-sol. “Muitos dizem que é triste, mas para mim era lindo”. E das flores, do céu, das estrelas, do riso das crianças, dos campos bem verdes.

Ela tem dois mundos. O de fora, que são vozes, perfumes, sons, e o dentro, que são sonhos, dores, amor. Pode ouvir os pássaros, o ruído infinito de uma cachoeira, o trovão, a tempestade e a ventania que revolta as árvores. O mundo é o que ela toca, é a textura das pessoas e das coisas, são as formas que os seus dez dedos devoram, envolvem, desvendam. Suas lembranças, quase todas, são despidas de imagens. Foi a tantos lugares, atravessou oceanos, conheceu papas, grandes escritores, tantos países, e em sua memória ficaram os objetos, as estátuas, as vozes. E se lembra da escritora Helen Keller, em seu livro “A porta aberta”, quando diz que quando se fica cego uma janela se fecha, mas às vezes, por se preocupar tanto com aquela janela que se fechou, não se vêem as dez portas abertas ao redor.

“Não poder ver é muito duro para você enfrentar, porque o mundo é muito atraente. Tive de me consolar em não ver todas as coisas, mas não é por isso que elas deixaram de existir. Então vibro quando sei que à minha volta existe uma paisagem bonita”, Dorina parece uma mistura homogênea entre sonho e realidade e brilha muito mais que a luz. Quando se viu cega, quando se viu do avesso, não houve desespero nem revolta nem ilusão. Aceitou sem nem sequer travar uma briga com Deus. Pelo contrário, agarrou-se a Ele, não parou de rezar, e fizeram, os dois, um trato: o de que, antes de deixar o mundo, Ele lhe permita dar uma voltinha pela Terra para enxergar todos os lugares pelos quais passou sem ver. Ela então ri, e repete o riso mais tantas vezes, riso pacífico e com tanta ternura, que nos dá a impressão de que é mais feliz do que a maioria de nós.

Parece que Dorina não sabe o que é medo nem limites. Mesmo no escuro, com os olhos vendados, foi pioneira em muitas coisas. Foi a primeira cega a frequentar uma escola pública, formou-se professora e, junto com as colegas, criou o primeiro curso de especialização em ensino de cegos do país. Em 1945, após a Segunda Grande Guerra, pleiteou e conseguiu uma bolsa de estudos, paga pelo governo norte-americano, para cursar especialização em educação de cegos na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos. Na viagem, conheceu o advogado Alexander Nowill, com quem se casou cinco anos depois e teve cinco filhos. Sentindo falta de uma imprensa de livros em braille no país, implantou logo em 1946 a primeira, que hoje já é a maior da América Latina, junto com a Fundação do Livro do Cego do Brasil, transformada há dezoito anos em Fundação Dorina Nowill. É um verdadeiro império que leva o seu nome. Em 79, foi eleita presidente do Conselho Mundial dos Cegos e coleciona prêmios e condecorações. Érico Veríssimo já lhe escreveu uma carta em que dizia: “Sua vida é um romance que eu gostaria de ter escrito”. Dorina semeia a vontade, em nós, de ver em dobro.

Imaginei se seus olhos, em coma por 73 anos, de súbito, pudessem ver a luz. Qual a primeira imagem que escolheria caso voltasse a enxergar? “Será que eu teria coragem de escolher? Não. Ela que aparecesse. E tudo seria lindo. Você já imaginou voltar a ver?”, ela me comove, mas prossegue: “Não fico sonhando. A minha retina ficou toda manchada com sangue, a córnea também não tem como reconstruir. Eu não me iludo. Eu não vejo. Não há nada no momento que a ciência possa fazer. Eu preciso dessa realidade para poder sonhar. Mas Deus pode querer um dia mudar as coisas”.

Lygia Roncel

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