O Estado de São Paulo contribui neste ano de 2012 para um debate que interessa o meio jurídico, as academias de polícia e a todos os concurseiros que objetivam ingressar no serviço público por meio dessas instituições. Foi promulgada no meio de março pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), a Proposta de Emenda Constitucional do Executivo (PEC) 19/2011 que possibilitou o reconhecimento da carreira de delegado da Polícia Civil como jurídica. “Era uma exigência antiga da classe”, declarou em entrevista exclusiva ao JC&E, o diretor da Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (ADPESP), George Melão.
A decisão, formalizada em plenário no início de abril e oficializada em Diário Oficial pela Emenda Constitucional 35, no entanto, é alvo de polêmicas. A Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef) emitiu nota repudiando a ambição dos delegados de ter a carreira ou cargo, como a Fenapef prefere discriminar, reconhecida como jurídica. Diz trecho da nota: “Ao longo dos últimos anos, a federação tem lutado, ao lado de seus sindicatos filiados, contra propostas que visam alçar os delegados de polícia à carreira jurídica. Em nosso entendimento, tais propostas têm caráter corporativista, aprofundam o fosso funcional existente nas polícias e nada contribuem para o aprimoramento da segurança pública”.
Para o advogado Renato M. Vieira, especialista em direito constitucional, a posição da Fenapef cede à intransigência, pois “a sociedade pode ganhar com a maior independência dos delegados de polícia, podendo os mesmos atuarem de forma mais livre, longe das pressões políticas e da própria sociedade organizada. Por outro lado, é claro que atende uma demanda antiga dos delegados, pois agora os mesmos possuem independência funcional”.
Essa independência funcional, um dos maiores trunfos da nova descrição da função, provê autonomia das atuações administrativa e política. Os críticos da medida, porém, lembram que bastam retidão e seriedade ao delegado para escapar do crivo dos corruptos e desinteressados. É o que defende o agente federal Tercio Fagundes Caldas em artigo publicado recentemente: “quem investiga qualquer fato delituoso, não precisa dessas prerrogativas (independência funcional) inerentes aos que têm funções constitucionais. Servidores públicos, como os delegados de polícia, têm de desenvolver sua missão dentro da legalidade e, para isto, precisam de recursos e conhecimento. Não de privilégios”.
George Melão coloca que o cargo detém atribuições jurídicas e que a emenda não muda nada, apenas corrige uma injustiça histórica. “O delegado é o primeiro a fazer a interpretação jurídica”, explica. Melão dá um exemplo de como essa interpretação é feita em um flagrante: “você tem seu carro roubado. Aí, dali a cinco dias, você vê um cara dirigindo esse carro. Ele é preso e todos os tramites processuais têm início. Mas não é flagrante. Por quê? Porque ele não foi preso no momento em que efetuava o furto ou roubo. Essa apreciação, de natureza jurídica, cabe ao delegado”. Melão coloca o fato da carreira ser privativa de bacharéis em direito, como o são as de promotor e juiz, como outro forte indicativo de que a emenda constitucional veio corrigir uma injustiça. Caldas, em seu artigo, refuta esse argumento. Ele lembra que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) faz distinção entre a “carreira jurídica” e a “atividade jurídica”. Ele lembra que oficiais de justiça, analistas judiciários, auditores e até mesmo escrivães de polícia exercem atividade jurídica no que a lei processual define como “auxiliares da justiça”, entre eles os cargos policiais e, não só, o de delegado de polícia. Vale lembrar que a Polícia Civil, na própria emenda constitucional promulgada, também é qualificada como polícia judiciária.
O professor de direito constitucional do Curso Maxx, Álvaro Luiz, além de advertir que a emenda não fere de modo algum a constituição, recorda que o Supremo Tribunal Federal (STF) já se pronunciou favoravelmente ao pleito dos delegados, quando acionado por caso semelhante no Estado do Piauí. O professor se mostra favorável à emenda à constituição paulista. “O delegado de polícia é o primeiro profissional do direito a ter o conhecimento do fato criminoso, atua de forma efetiva na fase pré-processual da persecução penal, o que na maioria das vezes se efetiva em ação penal e em condenação, preside o auto de prisão em flagrante, exerce juízo de mérito ao interpretar determinada situação para a manutenção ou não da prisão em flagrante, requisições de perícias em geral para a formação da prova técnica criminal ou pedido diversos à Justiça, finalizando com o relatório final da autoridade policial que conclui a investigação e passa para a apreciação do judiciário onde primeiramente servirá de base para a denúncia do Ministério Público, despachos interlocutórios no curso do inquérito, dentre outras competências estabelecidas no código processual penal; estando condizente com o seu atuar, típico de carreira jurídica, pois não ficam restritos ao poder executivo, são verdadeiros auxiliares do poder judiciário”.
Inconstitucionalidade e boas intenções O que torna o debate mais rico, porém, é um projeto de lei de autoria do deputado estadual José Zico Prado (PT) que muda os requisitos para ingresso na carreira de delegado da Polícia Civil. De acordo com o texto, que já recebeu parecer desfavorável na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Alesp, só poderiam se candidatar ao cargo de delegado, escrivães e investigadores de polícia, bacharéis em direito, e com o tempo mínimo de quatro anos de efetivo serviço policial. O deputado justifica que “dessa maneira se valorizaria a carreira policial e retificaria a estrutura organizacional da Polícia Civil que é ultrapassada”.
O projeto, porém, proporcionou um consenso entre os especialistas consultados pelo JC&E. Todos alertaram para sua inconstitucionalidade. “Todos os cargos públicos tem que ser ocupados por amplo concurso público. Jamais por concurso interno, onde se restringe o acesso ao topo”, argumenta Renato M. Vieira que entende que o projeto de lei vai de encontro ao ordenamento constitucional que “não permite a figura do concurso interno”. “É lamentável e totalmente inconstitucional”, afirmou George Melão que chamou a atenção para a carência de apreciação jurídica do texto. Álvaro Luiz considera a matéria “flagrantemente inconstitucional, pois o cargo já é privativo do bacharel de direito, não havendo necessidade de qualquer outro requisito como experiência profissional”. O presidente da Associação dos Escrivães de Polícia do Estado de São Paulo (AEPESP), Oscar de Miranda, admite que o projeto de lei fere o que chama de “interesses de classe” e prefere relegar o possível fracasso do mesmo às divergências políticas dos dois principais partidos do jogo político estadual. “No geral, o projeto é bom”, disse.
Na verdade, o projeto de lei é inspirado no modelo das polícias americanas que valoriza, através de promoções, seus investigadores e escrivães. Mas é “incompatível com a constituição brasileira”, lembra Renato M. Vieira.
O mais curioso é que ambos os projetos de lei têm como objetivo a valorização da carreira de delegado, mas são pensados sob perspectivas diferentes. Receoso do impacto do projeto de lei do deputado José Zico Prado, George Melão encaminhou à Alesp, e o JC&E teve acesso a este documento, um arrazoado (contra-argumentação de natureza jurídica) em que pormenoriza os prejuízos à sociedade no caso da aprovação do projeto de lei. No entanto, com o reconhecimento da carreira de delegado como jurídica, esse cenário ficou mais remoto. O debate aventado, porém, não está remotamente perto do fim.
Reinaldo Matheus Glioche/SP
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