Na necessidade de se reinventar, André teve também que reinventar o que fazer com o tempo
Em um ambiente escuro, um senhor se esconde entre pilhas e mais pilhas de livros. Ali, diante daquelas prateleiras entulhadas de exemplares, as indicações apontam a separação entre literatura brasileira, literatura estrangeira, psicologia, sociologia, cinema, teatro, música... Mas em frente à seção correta, os livros aparecem numa organização caótica, como em uma ordem alfabética inventada. Os nomes de autores pulam da letra “a” para a “m” e da “m” para a “c” em sucessivos equívocos. O senhor se levanta para ajudar e o “muito obrigado” soa falso após sua tentativa sem mérito.
Não era que André Garcia não estivesse acostumado ao caos. Mas nos ambientes em que se habituara, a desorganização fazia algum sentido. Era no entra e sai de executivos engravatados – com seus passos apressados, subindo e descendo os elevadores, correndo pelas escadas, lotados de pastas, papéis e decisões daquelas que poucos querem carregar – que as empresas prosperavam e os seus proprietários acumulavam mais e mais cifras nas contas bancárias. Já naquele ambiente escuro, onde o senhor escondido comprava e vendia livros usados, existia uma lógica que André ainda não podia entender. Era como se o seu exemplar fosse raro, peça perdida no tempo e impossível de resgatar.
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E André queria era fugir do caos. Depois de nove anos trabalhando com marketing em bancos de investimento, operadores de celulares e outras tantas empresas, não aguentava mais a rotina corporativa e a sua obsessão por aumentar o faturamento e sempre vender mais e vender mais e vender mais e vender mais e mais e mais e mais. Recusou uma proposta de efetivação após prestar um serviço temporário e passou a se dedicar aos estudos para ingressar em um mestrado de psicologia social. Foi quando, na procura de um livro, deparou-se pela primeira vez com alguns desses ambientes escuros, conhecidos como “sebos”, repletos de livros usados a preços mais acessíveis, com essa ordem um tanto quanto inusitada. “Não consegui me adaptar a forma de busca rudimentar. Tinha que perguntar pro livreiro, várias vezes ele não entendia o nome, não sabia se tinha... Acabei descobrindo que sebo é lugar para garimpar e se adaptar ao que tem lá e não para procurar algo específico”.
Mesmo assim, incansável, André perseverou na busca. Numa pesquisa na internet, notou que só meia dúzia de sebos tinha seu acervo catalogado e outros cem apresentavam apenas um site que apontava um e-mail para contato. “Como só meia dúzia com acervo e outros cem sem nada catalogado?”, “No Brasil inteiro só seis?”. E veio a ideia. “E seu eu reunisse todos em um único portal? Essa meia dúzia, os outros cem e os outros tantos que nem página na internet possuem?”.
Como motivação, além da ideia de um negócio, André foi instigado pela possibilidade de colocar em prática tudo aquilo que lia e relia no período em que esteve debruçado em livros de Marx, Freud e de tantos outros. Mesmo sem desenvolver sua pesquisa, sem ter ainda ingressado no mestrado, André criou suas próprias teorias e conceitos. Essa minoria, detentora de todo poder, ele conceituou de “elite do sebo”, questionou toda a desigualdade de acesso e se propôs a colocar em prática as estratégias para a queda do monopólio.
Sem conhecimento aprofundado sobre internet, conhecendo apenas o básico do html, decidiu, sozinho, criar seu próprio portal (não tinha dinheiro suficiente para pagar alguém que o fizesse e a ideia de buscar investidores, lembrando qualquer semelhança com o mundo corporativo, estava fora de questão). Arregaçou as mangas e trocou Freud por Java Script. Passou o primeiro mês só estudando e, depois, mais um ano conciliando teoria e prática.
Depois que o portal estava pronto, não foi difícil conseguir sebos adeptos. Com as informações da internet, guias de sebo e até mesmo matérias de jornais, surgiu um enorme banco de dados com nomes, endereços e telefones de todos os sebos. E, desse enorme banco de dados, 18 primeiros sebos cadastrados que, de tanto se multiplicar, somam hoje 1.632.
Na época, André pensava no negócio apenas como um complemento de renda e jamais poderia imaginar que fosse dar tão certo. Hoje, as 10 horas por dia de trabalho e os poucos finais de semana que tinha livre já são memória distante na casa aconchegante do bairro de Laranjeiras, no Rio de Janeiro, onde ele e mais oito funcionários trabalhavam apenas seis horas por dia (ganhando o equivalente a oito) e comemoram o tempo de sobra para o lazer.
Na necessidade de se reinventar, André teve também que reinventar o que fazer com o tempo. Literaturas sobre o ócio, como livros “Elogio ao Ócio”, “Ócio Criativo”, “Sobreviver ao Trabalho”, fizeram-no entender que era possível resistir a todos aqueles valores que tanto condenara. Hoje, o tempo, além do trabalho, é violão, pandeiro, leitura, pedalada, música, corrida, malhação e quantos outros hobbies forem possíveis e inventáveis.
Nina Rahe
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