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O silêncio deu à luz o estrondo

O suco de melancia é da mesma cor rubi da terra de Ijuí, onde gaúchos refletem sobre a vida de chimarrão...

Redação
Publicado em 30/10/2009, às 15h56

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O suco de melancia é da mesma cor rubi da terra de Ijuí, onde gaúchos refletem sobre a vida de chimarrão em punho. É da mesma cor do batom nos lábios finos de Eliane Brum, dos quais saem frases entrecortadas e embrulhadas num sotaque de lá, do sul, mas que trazem o universo no recheio. E eu não sei se é o sotaque, a elegância, a simplicidade ou o mistério, ou mesmo o olhar de dúvida e de honestidade que nos lança tão logo nos olha, mas há algo, ou uma soma imensa de virtudes, que exibe nela uma grandeza, algo que não cabe dentro dela e sai, e então chega em nós e explode. Apesar de uma pequenez estritamente humana que ela também carrega e que convive com a grandeza como, numa jaula, um leão e um elefante, cada um rei a seu tempo.

Em Ijuí, talvez com espanto a miúda Eliane tenha visto o mundo pela primeira vez. Caçula entre os três filhos de Argemiro e Vanyr, professores de português, estava sempre de luto, carregando dores que não eram suas, deslocada numa infância que “não era nada de aurora da minha vida”, o sol sempre brincando de esconde-esconde. “Era uma dor existencial da infância”, ela diz. Ouvia as novelas no rádio com as empregadas, as histórias mais absurdas nas rodas de adultos, via da sua janela uma diversidade étnica que era como se o mundo desfilasse para ela, e depois se trancava em si mesma, no silêncio que lhe era peculiar, e jogava a chave num lugar onde só ela poderia encontrar. E demorava-se assim, digerindo o que via e ouvia, cheia de porquês e de lágrimas que não entendiam o mundo – mesmo aquela miniatura de mundo que era o seu.

Ainda assim, era travessa, sagaz, vivíssima. Seu Argemiro sentava-se na poltrona quase todo coberto pelo jornal Correio do Povo que lia, mas naquilo Eliane não via graça. À chatice do jornal, preferia os livros da biblioteca dos pais, nos quais se debruçava e perdia o equilíbrio lá para dentro, onde havia vidas, cômodos, continentes, vozes que quebravam seu silêncio. De Monteiro Lobato adiante, tudo era enigma e descoberta. Começar a escrever foi um alívio para extravasar tanta perplexidade, uma ação de despejo para tudo que a habitava, para as dores que nela moravam de aluguel. Espalhava então poemas pela casa toda, abandonados em papéis e guardanapos que o pai ia recolhendo como se fossem pistas que desembocariam em um tesouro. E realmente o eram. O tesouro não era senão ela mesma, que resplandeceu em seu livro “Gotas da infância”, lançado quando contava onze anos e, já naquela época, muitos quilates.

Quatro anos depois engravidou e Ijuí caiu sobre sua cabeça, sólida como uma laje com toda a vizinhança em cima, só que mais pesada e mais dura e mais sem dó. Não a queriam fora de casa até que a barriga esvaziasse, porque a sociedade é assim mesmo, não quer ver o que lhe incomoda, quer varrer para trás da porta o que lhe constrange. Eliane, que tem olhar horizontal, agora o deixa cair, corta o fio entre nós para mais adiante tornar a amarrá-lo, escapa deixando claro que ali é campo minado e que devemos contorná-lo para preservar partes saudáveis de nós. Importa mesmo é que daquele susto de debutante resultou Maíra, uma criaturinha loira que se tornou imediatamente o seu mais inestimável bem. Mãe e filha, então, eram duas crianças que se amavam de um jeito vitalício que uma criança não pode entender nem mensurar, mas que nem mesmo os adultos e suas ciências chegam a compreender de fato, por estar além do que somos.

Casar-se e estudar Letras eram a opção de uma mãe precoce, mas Eliane rechaçou a ideia bravamente até Maíra completar dois anos. Depois, fugiu. Deixou a filha com os pais, um bilhete sobre um móvel com uma despedida e uma saudade que ficou pairando, e quatrocentos quilômetros adiante saltou em Porto Alegre, de surpresa na casa de um tio. “Eu não sabia bem o que queria, mas sabia exatamente o que eu não queria”, ela se dobra numa espécie de fúria de mulher que ninguém domestica, que não é de pertencer nem de aceitar pouco. Prestou vestibular para Biologia, pensou em Informática, mas acabou em Jornalismo e também em História, porém sem uma vontade que a prendesse em qualquer um dos dois destinos. No quarto e último ano do curso de Jornalismo, porém, o acaso deu seu salto – e foi bem um duplo twist carpado. Um professor a fez lembrar da garotinha que preenchia papéis avulsos, que se refugiava sob o teto das palavras e tinha tanto a dizer que lhe escapava pelo caminho. Sua reportagem inaugural, “Esperando na fila da existência”, foi inscrita por uma amiga em um concurso universitário e, como prêmio, rendeu-lhe um estágio no jornal Zero Hora, o mais lido do seu estado. Revelou-se, já ali, um modo desconcertante de escrever a que o jornalismo poucas vezes havia sido apresentado, uma visão agridoce de mundo, que se curvava à magnitude do ser humano, ao extraordinário que as vidas têm em suas versões aparentemente mais simples. Uma profundidade tamanha que a ela engole e trespassa, e nos revolve como uma retroescavadeira que recolhe a nossa camada de concreto e poeira – um legado do tempo – e chega enfim ao que todos tínhamos primordialmente de humano, mas que fora enterrado vivo debaixo de tanto entulho.

Onze anos depois, no ano 2000, desembarcou em São Paulo como repórter da revista Época, que está entre as maiores do país. Partiu ao mesmo tempo para outros ramos, escreveu três livros – no momento, há um quarto em gestação –, dirigiu um documentário (“Uma vida severina”, de 2005) – há também outro em fase de pós-produção –, faturou prêmios e elogios tantos, e viu seu nome encabeçar um movimento de renovação e humanização do jornalismo, que se encontrava áspero demais e vivo de menos. Quietinha assim no seu canto, Eliane até parece inofensiva, mas tem um quê de subversão, uma fresta de Pagu. Preserva um frescor capaz de reduzir uma mulher de quarenta e dois anos – mãe de uma psicanalista de vinte e sete – a uma menina com uma vontade desbravadora que acredita nas pequenas transformações. “O mundo é feito do pequeno”, ela crê tanto quanto eu, enquanto sorve pelo canudo seu suco de melancia. O jornalismo, ela mesma afirma depois de um suspiro, deu-lhe a capacidade de viver uma utopia. E também de contar a sua história em vidas que não a sua, embora confiadas a seu próprio punho e a seu próprio olhar. Deu sentido a ela, deu respostas. E por dar tanto vulto ao pequeno é que ela é gigante e não cabe ali ou em lugar nenhum, já que não existe cela que limite vontade, que prenda sonho, que enfraqueça sua crença insuspeita de que a gentileza é nossa dinamite para fazer revolução.

Lygia Roncel


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