Ou de como Zé Kéti, Nara Leão, Cartola, Carlos Lyra e outros bambas tentaram, aos trancos e barrancos, estabel
Ou de como Zé Kéti, Nara Leão, Cartola, Carlos Lyra e outros bambas tentaram, aos trancos e barrancos, estabelecer uma ponte entre a bossa nova e o samba
por Dafne Sampaio
As balas perdidas não mentem: o asfalto e o morro não se entendem mais, e isso não é de hoje. Mas no terreno da música tudo vai muito bem, obrigado: o samba é a voz de toda uma nova geração, da Lapa carioca à Vila Madalena paulistana e espalhada por todo o Brasil. Hoje, é fácil Marcelo D2 dizer que "Você quer sair do gueto/Mas a sua mente é o gueto/Você quer fugir do gueto/Mas o mundo inteiro é o gueto", mas quando Nara Leão gravou, no início da década de 60, sambas de compositores do morro então desconhecidos, como Zé Kéti, o buraco era mais embaixo. Uma cantora branca, moradora de um apartamento com vista para o mar e ligada à bem-sucedida, e também jovem, bossa nova cantando sambas de compositores negros e mais velhos sobre a realidade dos morros soou estranho para muita gente. A bossa nova de barquinhos e tardinhas deveria ser engajada? O morro e o asfalto podiam se entender? A criação, em 1961, do Centro de Cultura Popular da UNE e, em 1963, da casa de samba Zicartola, estabeleceram as primeiras conexões entre pontas soltas da realidade social e musical brasileira.
"Na bossa nova era muito uma questão de forma, e depois de um tempo tudo foi se tornando uma mesmice", diz o violonista e compositor Carlos Lyra. Autor de clássicos como "Lobo Bobo", "Saudade Fez um Samba" e "Maria Ninguém", gravados por João Gilberto em seu primeiro LP, Chega de Saudade (1959), Lyra foi um dos membros mais ativos e polêmicos da primeira geração da bossa nova. "A forma era importante, mas eu também queria que houvesse uma preocupação maior com o conteúdo e que tivesse realidade nas letras", esclarece, tomando para si os méritos de ter dado o pontapé inicial na criação de uma bossa nova mais "realista".
Ligado ao Partido Comunista e ao Teatro de Arena, Lyra foi um dos fundadores, ao lado do ator e dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho (Vianinha), do poeta Ferreira Gullar e do cineasta Leon Hirszman, do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes, o CPC-UNE, em 1961. "Fiz parte desse sonho de mudar o Brasil. Era um ambiente muito democrático e produtivo, apesar do pouco dinheiro que tínhamos", relembra Lyra.
O CPC atuou em diversas áreas culturais, desde o cinema e o teatro até a literatura, mas foi no terreno mais acessível da música que teve seu maior cartaz. "Nosso objetivo era procurar a raiz da música brasileira nos morros e no Nordeste. Isso daria um conteúdo realista para a música que vinha da bossa nova", diz Lyra. Era uma doce utopia esse encontro sem ressentimentos entre os intelectuais e músicos burgueses cariocas e os compositores das periferias de então, mas de real mesmo aconteceu, em dezembro de 1962, a 1ª Noite da Música Popular Brasileira no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, reunindo Pixinguinha, Vinicius de Moraes e a bateria da Portela.
De fora dos movimentos estudantis e da música cantada pela zona sul carioca, e dentro do mundo das escolas de samba, o então pouco conhecido compositor Elton Medeiros relembra o período: "O pessoal da bossa nova tinha um interesse legítimo pela realidade social brasileira, e mesmo os que não eram politizados, como o Carlos Lyra, o Vinicius de Moraes e a Nara Leão, traziam uma atitude de renovação. E se ela provoca uma transformação cultural, tem um cunho ideológico, consciente ou não". No entanto, não deixa de ser esclarecedor que, por trás das boas intenções do CPC existisse um discurso elitista, fruto da intelectualidade da UNE. Publicado em 1962, o Manifesto do CPC-UNE definiu a instituição como "fruto da própria iniciativa, da própria combatividade criadora do povo" para logo depois afirmar que "os membros do CPC optaram por ser povo". Tal atitude paternalista não passava de puro populismo, que acabava revelado em outro trecho: "A arte do povo é tão desprovida de qualidade artística e de pretensões culturais que nunca vai além de uma tentativa tosca e desajeitada de exprimir fatos triviais dados à sensibilidade mais embotada". Existia um grande abismo entre o povo idealizado pela UNE e o povo real, qualquer que fosse ele.
* Matéria extraída, na íntegra, do site da Revista BIZZ (www.revistabizz.com.br).
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