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Quando o impossível é invisível aos olhos

Entro em seu escritório enquanto Ayrton Senna é velado na tevê. A fita VHS é de 1994...

Redação
Publicado em 09/10/2009, às 14h58

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Entro em seu escritório enquanto Ayrton Senna é velado na tevê. A fita VHS é de 1994, tempo em que os videocassetes eram os reis da sala de estar, em que quase todo domingo era hasteada uma bandeira brasileira e a gente levantava cedo para ver. O Brasil nunca mais vai chorar tanto uma perda, nós dois concordamos, depois de um breve silêncio buscando uma palavra que nos tirasse do luto. Mas há uma perda que sempre vai nos acompanhar, permeando cada conquista, à sombra de cada bandeira que tremula. Porque há vazios imensos que os anos não preenchem nem quando viram séculos.

Quem está a meu lado, passando VHS para DVD e nos fazendo voltar no tempo, é Gonçalo Borges, alguém que acabo de conhecer e que me conta, agora com euforia de menino, da Copa do Mundo de 70, dos gols do Pelé, do incrível tricampeonato. Eu sou da época do tetra, do penta, de Romário e Ronaldo. Mas era, antigamente, ele diz, que se jogava o melhor futebol, e a conversa é longa, cheia de atalhos, se distanciando cada vez mais do dia de hoje. Falamos de ídolos, de homens que faziam o impossível se dissolver no suor, desaparecer em cada recorde, morrer em cada passo além. Como eles, na mesma marcha dos vencedores, Gonçalo também quer saber o que há detrás de cada obstáculo, e por isso sempre avança.

Já são cinquenta e sete anos desde que, numa fazenda em Novo Horizonte, a cerca de 400 quilômetros da capital paulista, sua avó lhe tirou de dentro de sua mãe. Puxou-lhe pelos pés, porque veio ao mundo invertido, e sua mãe por pouco não morreu das complicações do parto. A avó constatou: era menino, mas um menino diferente, embora o choro fosse normal, forte, valente. Os braços pendiam por entre os pés, quase se confundiam. Enrolou-o como uma múmia para que ficasse reto e foi criado como os outros cinco irmãos, embora não fosse como eles. Pequeno, arrastava-se sentado ao chão da casa, usava os pés para rabiscar e mexer nas coisas, e demorou cinco ou seis anos até conseguir dar os primeiros passos.

Participava, com todas as outras crianças da vizinhança, das brincadeiras normais de toda infância. Jogava bola, peão, bolinha de gude, empinava pipa e fabricava, com arame e lata, seus próprios brinquedos. Tinha também um batalhão de soldadinhos de chumbo, corria pelo campo, voltava sujo de barro para casa, ficava de castigo. Os pais, Joaquim e Aparecida, trabalhavam na roça e foram aconselhados a viajar com o menino à capital, até o Hospital das Clínicas, para procurar auxílio médico. Acabaram se mudando para lá, morando de aluguel e trabalhando como operários, enquanto Gonçalo passava por diversos exames e uma cirurgia para construir articulações no cotovelo. Nada, porém, mudou em sua vida. Deixou para lá os médicos.

Sem saber ainda ler ou escrever, os pais tentaram, sem sucesso, matriculá-lo em escolas comuns, mas nenhuma queria um deficiente entre seus alunos. Isso distrairia as outras crianças, causaria tumulto, estranhamentos, dificuldades de adaptação. Tiveram então de optar por interná-lo em um centro de reabilitação, onde o filho teria uma rotina de aulas e atividades complementares, como desenho, natação, tecelagem. O menino descobriu, com empolgação, Geografia e História, mas a grande paixão era mesmo Educação Artística. Aprendeu a fazer pinturas belíssimas com a boca, ganhou concursos de desenho promovidos pelo governo para campanhas de educação do trânsito e ambiental, foi o símbolo de muitas delas, um prodígio. Entretanto, apesar de toda a evolução, via os pais apenas uma vez por mês e chorava de saudade de casa, da liberdade – antes tão ao alcance –, dos campeonatos de bolinha de gude, da pipa cortando o céu. Ali dentro, Gonçalo passou seis anos. Quando saiu, já beirava a adolescência e sentiu, lembra-se que pela primeira vez, a rejeição olhando seu defeito de canto de olho.

Foi finalmente aceito em uma escola e o início, com atenções exageradas das professoras, foi uma fase complicada. A dificuldade era enorme para arranjar uma namorada, mas os amigos ele ia somando com o passar dos dias. Tem esse dom de cativar, olha no olho, abre um sorriso depressa e puxa o fio de uma conversa, como se fosse um novelo de lã que ele vai desenrolando, desenrolando. É um homem de carisma, a muitas léguas de ser coitado.

Acabou formado em Publicidade e em Artes Plásticas e pós-graduado pela USP. Pinta com a boca e com os pés palhaços que quase saem da tela para rir para nós e rosas de um vermelho tão vivo que parecem cria de um florista, e não de um pintor. Debruça-se sobre a tela em branco e vai germinando com cores e pincel borboletas, paisagens, anjos, peixes, pombas brancas, o mundo. Dá palestras motivacionais no Brasil e também fora, na Áustria, em Portugal, no México, no Uruguai. Mora no bairro da Penha com o pai, já viúvo, e com a filha Cidinha. Separado da primeira mulher, se casará novamente em janeiro com Fabiana, moça simpática que me conta da viagem do casal em julho para a Bahia, sua terra natal, e das pouquíssimas dificuldades que o noivo tem no dia a dia. Dirige um carro adaptado, põe o cinto de motorista, escova os dentes, toma banho, veste-se, usa e conserta o computador, tudo sozinho. Para ele, nada é mistério. O obstáculo maior é o ser humano, é o preconceito que corre solto por aí como bicho sem rédea, selvagem e predador.

Lygia Roncel

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