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Luiz Gama, herói do povo brasileiro

* por Fábio Konder Comparato.

Redação
Publicado em 16/05/2007, às 12h13

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* por Fábio Konder Comparato


ELE HERDOU da mãe o caráter indômito e apaixonado. Luiza Mahin, africana livre da nação nagô, oriunda da Costa da Mina, tomou parte ativa nas insurreições baianas de 1835 e 1837 e acabou sendo deportada, não se sabe se para o Rio de Janeiro ou se definitivamente para a África.

Quanto ao pai, de uma família ilustre da Bahia, arruinou-se no jogo e acabou vendendo o filho como escravo em 1840, quando contava dez anos de idade. Luiz Gama teve a suprema dignidade de jamais revelar o nome do seu indigno progenitor.

Embarcado para o Rio de Janeiro com dezenas de outros escravos, o menino foi vendido a um traficante paulista. Subiu a pé de Santos até Campinas, onde foi refugado por um fazendeiro por vir da Bahia, província de má fama à época por ser o teatro de sucessivas rebeliões de escravos.

Alfabetizado por um jovem amigo aos 17 anos, Luiz Gama apaixonou-se de imediato pelos livros, paixão que o acompanhou até a morte.

Aos 18, fugiu do cativeiro doméstico em São Paulo para sentar praça na Marinha de Guerra. Seis anos depois, já cabo-de-esquadra, insurgiu-se contra um oficial insolente que o insultou, foi preso e compareceu perante o Conselho de Guerra, que o excluiu dos quadros daquela força.

Retornou a São Paulo, onde passou a trabalhar no escritório de um escrivão e depois na Secretaria de Governo da Província. Nessa ocasião, veio-lhe a inspiração de estudar direito para defender em juízo a vida e a liberdade da imensa população de negros escravos. Repelido pelos estudantes em sua tentativa de matricular-se na já famosa faculdade de direito, tomou a opção definitiva de atuar como rábula até o fim da vida, em 1882.

A grande questão jurídica que Luiz Gama levantou, na imprensa e nos tribunais, foi a vigência da lei de 7 de novembro de 1831, a qual, em cumprimento a um tratado de repressão do tráfico negreiro celebrado por Portugal com a Inglaterra em 1818, declarara livres todos os africanos desembarcados no país após aquela data.

Enquanto magistrados covardes, cedendo à pressão dos fazendeiros, se recusavam a aplicá-la, o governo multiplicava exigências burocráticas para a soltura dos negros criminosamente mantidos no cativeiro e a Assembléia Geral votava leis destinadas a esvaziar toda força normativa da lei, embora mantendo-a formalmente em vigor.

Em suma, era a velha tática brasileira de cobrir a dominação oligárquica com as vestes ornamentais do "Estado de Direito". Para nós, desde a Independência, a Constituição, os tratados internacionais e as leis votadas no Parlamento sempre foram recebidas como as ordenações d'El Rei, nosso senhor durante o período colonial: respeitosamente acatadas, mas não cumpridas.

Luiz Gama soube denunciar, com competência e indignação, essa impostura perversa. Sozinho -fato único em nossa história-, conseguiu libertar nos tribunais mais de 500 escravos.

Ao mesmo tempo, procurou combater a instituição infame por meio da militância política. Mas aí sua decepção foi absoluta. Atuou sucessivamente no Partido Liberal e no Partido Republicano, retirando-se de ambos tão logo percebeu sua conivência efetiva, embora envergonhada, com o que se denominava à época, com fingido recato, "a questão servil".

Dessa amarga experiência partidária retirou a lição capital de que, sem um amplo movimento de revolta popular, o meio político saberia manter a escravidão até o extremo limite do seu esgotamento.

No final da vida, Luiz Gama foi o grande inspirador do Movimento dos Caifazes, de Antonio Bento de Souza e Castro, que promoveu a fuga de milhares de escravos, desorganizando irreparavelmente a lavoura nos grandes domínios rurais de São Paulo. A lei de abolição da escravatura tornara-se inevitável.

Como se percebe, a opção abolicionista de Luiz Gama foi bem diversa da via estritamente parlamentar, seguida por Joaquim Nabuco. A história veio demonstrar que o advogado negro acertara em cheio o alvo.

Que isso nos sirva de exemplo para enfrentarmos o magno problema da atualidade, no Brasil e na América Latina, problema de solução incomparavelmente mais difícil e de caráter não menos escandaloso que a escravidão: como abolir o regime político fraudulento que encobre, sob o aparato republicano e democrático, a permanente usurpação da soberania popular.


* FÁBIO KONDER COMPARATO, 70, advogado, é professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP. É autor, entre outras obras, de "Ética - Direito, Moral e Religião no Mundo Moderno" (Companhia das Letras). Artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo.

* Artigo extraído, na íntegra, do site da OAB – Seccional São Paulo (www.oabsp.org.br).
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